Religião provoca violência? - Por Leandro Narloch
Nos últimos dez anos, 101
torcedores morreram em brigas de estádio no Brasil.
O número é cinco vezes o de
mortos em ataques de terroristas muçulmanos na França e o dobro das vítimas da
Inglaterra no mesmo período.
Podemos então dizer que esporte
mata? Que o futebol provoca violência? Pois é exatamente o que fazemos quando
culpamos a religião pelo terrorismo.
A crueldade do ataque aos
jornalistas do Charlie Hebdo faz muita gente ligar os pontos e
afirmar que religião causa violência. Gente graúda pensa assim, como Richard
Dawkins, na minha opinião um dos gênios vivos da ciência. Também parece haver
bons argumentos para essa ideia.
As cruzadas, as carnificinas entre
protestantes e católicos nos séculos 16 e 17, os conflitos entre hindus e
muçulmanos na Índia: banhos de sangue em nome da fé são frequentes na história.
Mas isso é um mito. Religião não
provoca violência, ou melhor: provoca tanta violência quanto qualquer
identidade de grupo. O homem mata em nome da fé, mas também em nome de
ideologias políticas, da nação, de etnias, da escolha sexual, do estilo de
roupas e músicas (como as gangues de Nova York dos anos 80) ou em nome de times
de futebol. O problema não é a religião, mas a tendência humana à hostilidade entre
grupos.
Para entender esse padrão é
preciso ir longe, até o momento em que violência entrou para o repertório de
comportamentos humanos, há algumas centenas de milhares de anos.
Nas savanas da África, onde o
homem passou 90% de sua história evolutiva, ficar sozinho não era uma boa
ideia. Significava estar vulnerável a animais ferozes e a ataques de tribos
vizinhas. A solidão também resultava em fome, pois a caça de grandes animais da
megafauna (o big game) exigia ação coletiva e coordenada.
Para sobreviver e ter filhos, era
preciso pertencer a um grupo. Fechar um “pacto ou conspiração baseada em
interesses mútuos de longo prazo”, como diz o próprio Dawkins em: O Gene
Egoísta.
Mas pertencer a um grupo não bastava. Os genes tinham mais chances de
se perpetuar se o indivíduo participasse de uma coalização vencedora.
Grupos
mais harmônicos e cooperativos, que armavam emboscadas com maestria, construíam
boas ferramentas e abatiam o inimigo sem piedade, superavam grupos humanos
desunidos.
A evolução favoreceu, assim, a
tendência a dois comportamentos opostos. Entre os membros do grupo, ganhou o
páreo o indivíduo capaz de sentir emoções que possibilitavam a cooperação. É o
caso da compaixão, a satisfação em fazer amigos, a noção de culpa (sentimento
que nos empurra para reparação e conciliação com o grupo), a vontade de
castigar quem não coopera, a obsessão humana com a reputação, o medo de ficar
sozinho. Ao mesmo tempo, emergiu a tendência à hostilidade e à violência contra
grupos rivais. É o que os biólogos chamam de “altruísmo paroquial”.
Basta uma olhadela na história
mundial para perceber que boa parte dela se resume a hordas, gangues, tropas,
tribos, times, bandos, exércitos, enfim, coalizões de homens jovens cooperando
entre si, lutando contra outras coalizões de homens jovens. A religião, nessa
história, é mais um pretexto para justificar uma antiga tendência humana ao
antagonismo entre grupos.
Não nego que algumas crenças
incitem os fiéis à violência e sejam mais problemáticas que outras. Mas achar
que guerras e atentados diminuiriam se as religiões acabassem é ser otimista
demais com o homem. Como mostrou o século 20, não é preciso religião para haver
massacres e genocídios.
Fonte: http://veja.abril.com.br
Comentários