Respeitarás a sexualidade do próximo e não discriminarás - Por Marcelo Santos
A peleja dos homossexuais que
querem exercer sua religiosidade sem ser discriminados.
Há algo muito caro ao advogado
carioca Ricardo Pinheiro, 40 anos. Trata-se de sua espiritualidade. Ele diz que
a sua vida seria impraticável sem a fé. E que assim pavimentou o caminho na
carreira em defesa dos direitos humanos e no ativismo como líder comunitário.
Nascido e criado em família protestante, Ricardo abraçou valores do
cristianismo e fez deles sua bandeira. Chegou a estudar Teologia e liderou
jovens, discutindo textos bíblicos em praças públicas. A chegada da maioridade,
porém, assim como nos anos seguintes o dilema da orientação sexual passaram a
ocupar espaço importante: fugir da realidade ou assumir a homossexualidade. Ele
decidiu que não se tratava de enfrentar a si mesmo e seu dilema, mas o
preconceito.
Na época, Ricardo frequentava uma
igreja presbiteriana no Rio de Janeiro, e começou a colecionar as antipatias
dos pastores da região, que o viam como um semeador de “confusões”. Recebeu
ameaças, mas foi adiante no propósito de seguir anunciando o que acreditava ser
a mensagem cristã “que liberta verdadeiramente o ser de um homem, de uma
mulher”. Aos 32 anos, deixou para trás sua antiga igreja por não querer mais
conviver com preconceitos e intolerâncias pregadas e ensinadas de púlpito. Mas
ressentia-se de se afastar das atividades mais banais, como os cultos e os
estudos bíblicos.
Foi assim que se aproximou da
Igreja Episcopal Anglicana, que tem causado polêmica por sua posição mais
respeitosa às uniões homoafetivas. A instituição foi a primeira a se pronunciar
oficialmente em apoio à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que
equiparou, em 2011, as uniões homoafetivas às demais uniões estáveis, o que
culminou nas mudanças feitas por meio de resolução do Conselho Nacional de
Justiça (175/2013), autorizando o casamento civil com base nos princípios
constitucionais de igualdade e de não-discriminação.
“Fui vendo que, ao
contrário do que a Igreja pensa e vê, por não querer enxergar, a sexualidade
faz parte de uma individuação que não é e não pode ser formatada. Faz parte da
beleza da diversidade criada.”
Hoje, Ricardo diz estar de bem
consigo mesmo. “Abracei a fé que não teme o diferente de mim, nem o demoniza.”
Tornou-se líder do movimento Episcopaz, pastoral de direitos humanos ligada à
paróquia da Santíssima Trindade, na Diocese Anglicana do Rio.
“Defendemos a
inclusão numa perspectiva ligada à diversidade”, resume. Assim como ele, não
são poucos os homossexuais que desejam vivenciar sua espiritualidade. Ao
contrário do que faz parecer o truculento discurso de alguns líderes
religiosos, para boa parte da comunidade de gays, lésbicas, bissexuais,
travestis e transgêneros a fé é fundamental.
Igrejas inclusivas
A Igreja Evangélica possui
curiosidades. Se entre os cristãos os evangélicos são os mais radicais no que
chamam de “defesa da família tradicional”, nos parlamentos ou nas telas da TV, foi justamente entre os protestantes que nasceu o fenômeno das igrejas
inclusivas, comunidades lideradas por homossexuais e que carregam as mesmas
características de outras denominações pentecostais. Com reuniões espontâneas,
músicas e orações idênticas a qualquer outra igreja evangélica, estima-se que
10 mil fiéis, entre héteros e gays, frequentem os cerca de 40 templos pelo
país.
O movimento nasceu em 1968, em
Los Angeles. Coube ao reverendo Troy Perry, um ex-pastor batista
norte-americano, descasado e com dois filhos, reunir 12 pessoas para o primeiro
culto da Metropolitan Community Churches, as Igrejas Metropolitanas que
atualmente reúnem 43 mil pessoas em 37 países. No Brasil, há oito templos da
denominação evangélica, com aproximadamente 500 pessoas.
Entre os fiéis católicos há
também esperança de que o discurso mais contemporizador do argentino Jorge
Mario Bergoglio, o papa Franscisco, possa aproximar a comunidade LGBTT (de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros) das paróquias. Em julho
passado, após a Jornada Mundial da Juventude, realizada no Rio de Janeiro,
Francisco disse: “Se alguém é gay e busca o Senhor com sinceridade, quem sou eu
para julgá-lo?”.
Apesar da repercussão, o papa
apenas seguiu o catecismo. A Igreja Católica não vê a homossexualidade como uma
aberração ou possessão demoníaca e prevê ainda que as pessoas devem ser
acolhidas com respeito, compaixão e delicadeza. Evitando todo sinal de
discriminação injusta.
“No atual pensamento da Igreja, os homossexuais devem
viver em castidade. Porém isso não é um dogma, ou seja, uma verdade absoluta.
Quer dizer, é um campo em que as coisas podem mudar. Assim como mudou e vêm
mudando temas como a escravidão, o papel da mulher, além de outros, como o
celibato dos padres, que são frequentemente questionados”, explica Lucas Paiva,
28, um dos líderes do Diversidade Católica, um grupo que acredita ser possível
viver duas identidades aparentemente antagônicas: ser católico e ser gay.
O IBGE ajuda a confirmar isso.
Entre os casais homoafetivos contados no Censo de 2010, 47,4% se declararam
católicos, enquanto 20,4% diziam não possuir nenhuma religião.
O Vaticano tem percebido esse
rebanho e incluiu perguntas sobre famílias homoafetivas no questionário enviado
às Conferências Episcopais para o documento preparatório da Assembleia Geral
Extraordinária do Sínodo de Bispos, que será realizada em outubro.
“Apesar de
não acreditar em uma alteração doutrinal agora, creio que a mudança no tom e um
aprofundamento da ação pastoral para acolhida de gays, divorciados, mães e pais
solteiros poderá trazer bons frutos e derrubar os argumentos dos
preconceituosos que agem em nome de Deus. Isso de condenar os outros se
apoiando em Deus é para mim o mais grave problema. Um grande pecado”, diz
Lucas.
De família religiosa, ele viveu
por um tempo recluso de sua relação com a igreja. Em 2009, no entanto, sentiu o
que chama de “reflorescimento da fé”. A experiência levou o jovem gerente de
call center a procurar as reuniões do Diversidade Católica, que em São Paulo
acontecem na Casa de Clara, um centro franciscano localizado no bairro da Bela
Vista, na região central.
“Existem muitas pessoas que vivem escondidas,
infelizes, porque se sentem rejeitadas. Nosso grupo, além de ser um espaço para
encontro e expressão, é também um lugar de acolhida. Sobretudo para pessoas
machucadas e com dificuldade de aceitação.”
Paralelamente, representantes de
religiões, especialmente as cristãs, e movimentos gays, vivem em clima de
tensão. Em 2011, a organização da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em uma
resposta aos constantes ataques que vinha recebendo de religiosos e, sobretudo,
a ação de fundamentalistas que bloqueavam uma legislação mais inclusiva e
igualitária, saiu às ruas com imagens erotizadas de santos de devoção católica.
Sob o tema: “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!”, a parada cobrava bom
senso e respeito aos direitos humanos. A estratégia levou à fúria
personalidades controversas, como o pastor televisivo Silas Malafaia, líder das
Assembleias de Deus Vitória em Cristo:
“Os caras na Parada Gay ridicularizaram
símbolos da Igreja Católica e ninguém fala nada. É pra Igreja Católica ‘entrar
de pau’ em cima desses caras, sabe? ‘Baixar o porrete’ em cima pra esses caras
aprender”, vociferou em seu programa de TV.
Mais comedido, o cardeal dom
Odilo Scherer publicou no jornal da Arquidiocese de São Paulo um artigo
dizendo-se entristecido com o que considerou “deboche”. Lucas Paiva também
desaprovou a ação: “Apenas serviu para reforçar um clima de rivalidade entre os
gays e as religiões”.
Tolerância
Na opinião do teólogo Carlos
Bregantim, 58, líder do Caminho da Graça, grupo protestante alternativo, a
homofobia nada tem a ver com os escritos da Bíblia. “A comunidade de Jesus de
Nazaré é a do amor. Não tenho dúvidas de que homoafetivos ou qualquer outra
pessoa pode ter acesso a Deus.” Para ele, vozes como a de Malafaia ou de
parlamentares como o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) não representam
a comunidade cristã.
Pastor há 30 anos, ele conta que em sua congregação há
homoafetivos que cooperam na organização dos cultos. “Há pessoas nessa condição
em muitas igrejas. Mas, geralmente, elas não têm coragem ou não são encorajadas
a se assumir.”
Se entre os cristãos há ainda
resistência à homossexualidade, o mesmo não ocorre em religiões como o budismo,
espiritismo ou mesmo as religiões afro-brasileiras. “Claro que são pessoas
diferentes e não existe um cânone na umbanda ou candomblé. Mas nunca presenciei
nenhum ato discriminatório nos terreiros, e já vi pai-de-santo incorporar
entidades homossexuais”, relata a professora Maria Elise Rivas, da Faculdade de
Teologia Umbandista, em São Paulo. Segundo ela, as religiões afro-brasileiras
possuem diversas entidades bissexuais, conhecidas como Edês. “Há uma
perspectiva diferente da ocidental e cristã, que polariza homens e mulheres.”
Pais religiosos, filhos gays
No consultório da terapeuta Edith
Modesto, 77, dia sim, dia não, pais a procuram desesperados após descobrir que
seus filhos são homoafetivos. “De modo geral, os evangélicos são os pais com
maior dificuldade e os que mais sofrem quando descobrem que tem um filho ou
filha homossexual. Mas também há católicos ortodoxos que ainda sentem muita
dificuldade. Ainda há pais que dizem que o filho tem o demônio no corpo, como
se dizia na Idade Média”, relata.
A terapeuta coordena o Grupo de
Pais de Homossexuais, iniciativa que começou a partir de sua própria
experiência ao descobrir que o caçula de seus sete filhos é gay. Hoje, ela se
reúne com cerca de 30 pais no seu consultório e conversa com outras centenas
pela internet sobre preconceito e aceitação.
Entre relatos, gente aflita como a
psicóloga evangélica de 54 anos que pensou em suicídio, quando soube que o
filho é gay. “Foi como uma punhalada no peito”, conta a mãe, que não quis se
identificar.
Edith afirma que, assim como os
pais conservadores, filhos homossexuais religiosos geralmente também pensam
numa saída definitiva aos seus dramas. “Atendo muitos jovens que pensam em se
suicidar. Já fui socorrer um garoto que estava prestes a pular de um viaduto.
Ser religioso pode facilitar a auto-homofobia”.
Mesmo que o processo de aceitação
em ambiente religioso seja mais penoso, ela não aconselha pais nem filhos a
abandonar suas comunidades de fé.
“A culpa pode ser pior. Acompanhamos a
família, tentamos mostrar que a homossexualidade não é escolha, não é doença,
nem é um pecado. É uma condição”, argumenta. E, se mesmo assim pais e filhos
ficarem reticentes, ela orienta: “Conversem diretamente com Deus. Deus é amor,
pai de todos nós. Independentemente da orientação sexual que tenhamos. O amor
vence”.
Comentários