Israel adapta quartéis ao estilo de vida de judeus ortodoxos para atrair quem não quer se alistar – Por Ana Carbajosa
Ao meio-dia, a Kyria, o
quartel-general das forças armadas israelenses, é um formigueiro de
uniformizados que se dirigem às cantinas, onde lhes servem um almoço
subvencionado. A maioria é muito jovem. Há homens e mulheres. Há os que usam
quipá e os que não usam.
Em um dos refeitórios se
concentram os soldados religiosos. Ali podem escolher entre diversos pratos de
comida "kosher", segundo seu grau de observância religiosa e a
corrente do judaísmo a que pertencem. Na parede está pendurado o certificado
rabínico que garante que os alimentos são elaborados respeitando as leis do
judaísmo ortodoxo.
De sobremesa há sorvete de gelo,
sem vestígios de leite para respeitar o ditado bíblico que proíbe misturar
leite com carne na mesma refeição. Garantir aos soldados religiosos sua
alimentação é uma das medidas com que o exército israelense quer garantir que
os "haredim", literalmente "temerosos de Deus", que
quiserem servir o exército possam fazê-lo.
O governo israelense trabalha
contra o relógio em uma lei que obrigue os ultrarreligiosos a se alistar e que
rompa uma tradição de 64 anos, os mesmos que passaram desde a criação do Estado
de Israel. A imensa maioria dos haredim não quer fazer o serviço militar
obrigatório porque acredita que sua missão na vida consiste em estudar nas
escolas talmúdicas dia e noite.
Defender seu país com as armas seria um desvio
intolerável. Além disso, misturar-se com homens e sobretudo com mulheres que
não são como eles e que comem, se vestem e se relacionam de maneira diferente
representa um desafio ao estilo de vida das herméticas comunidades haredim.
O governo considera a situação
insustentável, devido ao meteórico crescimento da população haredim. Sem os
religiosos é cada vez menor a porcentagem de famílias que enviam seus filhos
para o exército. O Tribunal Supremo anulou tal isenção.
Alguns ultrarreligiosos se
atrevem a romper o consenso que rege seus bairros e sinagogas. Há rabinos que
inclusive aconselham seus discípulos a se alistar porque dizem que nem todos os
rapazes servem para passar dia e noite estudando na yeshiva e porque nem todas
as famílias, por mais austeras que sejam, podem se permitir viver das doações e
subsídios estatais aos estudantes.
Em um dos escritórios da Kyria,
Yehuda Glickman, ultraortodoxo do ramo lituano, com barba, quipá preto e
uniforme militar, conta seu caso. Quando decidiu que queria se alistar,
procurou seu rabino. O rabino, cujo nome Glickman prefere esconder para evitar
represálias na comunidade, disse que sim. Sua família o apoia, mas "no
ambiente haredim não é fácil que o aceitem", confessa.
Ao seu lado, outro
ultraortodoxo conta que um dia o fizeram correr sob insultos por passar de
uniforme por Mea Sharim, um bairro haredim de Jerusalém.
Glickman escuta as preocupações
dos ultraortodoxos que querem se alistar. Sua missão inclui garantir que os que
entram não sejam contaminados pelo modo de vida do israelense médio.
Esse pai de dois filhos,
"graças a Deus", explica que uma das principais preocupações é o
contato com as mulheres. "Tentamos proporcionar ao soldado um ambiente em
que ele não tenha relação direta com elas. É uma questão cultural, afinal
crescemos separados."
As autorizações diárias para rezar e estudar textos bíblicos são outras singularidades desses recrutas. Em suas bases de destino não se liga a televisão, o acesso à Internet é restrito e vão para casa em tempo para o shabat, dia sagrado dos judeus.
A nova lei poderá obrigar os
ortodoxos a se alistar, mas para que os uniformes cáqui ocupem os varais dos
bairros haredim será preciso algo mais que penas de prisão para os infratores.
"O rabino está no cume da montanha. Ele vê o que está do outro lado. Os
haredim farão o que os grandes rabinos decidirem. Deles depende tudo",
termina Glickman.
Comentários