Padre Cícero: a história continua - Por Regis Lopes



Em 1889, ocorreu a primeira manifestação pública do chamado milagre de Juazeiro, quando a hóstia entregue pelo padre virou sangue na boca da beata Maria Araújo A hóstia virou sangue na boca da beata Maria de Araújo e o padre Cícero recebeu seu atestado de santidade. De lá para cá, não foram só as romarias que aumentaram. O número de livros sobre o assunto também nunca deixou de crescer. Acumulam-se hoje em torno de 150 volumes, sem contar com opúsculos, dissertações, teses e artigos saídos em periódicos. Na prateleira, a "coleção ciceroniana" enfileirada ocupa mais ou menos três metros. Mas, se são contabilizados os livros que, de alguma maneira, citam Juazeiro, a coleção transmuta-se em biblioteca.

Como era de se esperar, há muitas repetições e os mais entendidos em direitos autorais podem até argumentar sobre a existência de plágio. Nada de estranho, porque a tendência para dizer as mesmas coisas com palavras ligeiramente diferentes, como se sabe, não é privilégio desse assunto. O mesmo acontece com outras publicações que tratam do passado e despertam interesses de um público mais amplo, como biografias e livros didáticos. Assim, não seria despropositada uma catalogação nesses termos: os originais, os copiadores e os ambíguos. Outra classificação pertinente teria sentido a partir da ideia de tribunal que se estabeleceu com o passar do tempo. De um lado a defesa, do outro o ataque, pressupondo-se que o autor é o juiz e o leitor é o jurado. Para se perceber isso, aliás, basta lembrar duas obras: Eu defendo o padre Cícero (Neri Feitosa, 1982) e Falta um defensor para o padre Cícero (Antônio Feitosa, 1983). Mas nada se compara com a agressividade do título: Pretensos milagres de Juazeiro (Helvídio Martins, 1974). No auge da querela, veio uma resposta no mínimo criativa com a publicação de: O padre Cícero por ele mesmo (Therezinha Guimarães e Anne Dumolin, 1983).

Fazer uma fronteira entre os acadêmicos e os não-acadêmicos também é plausível. Se no segundo grupo há uma incalculável variedade, no primeiro se sobressai o conjunto de pesquisadores que interpretam o padre Cícero como uma figura que pode ser melhor estudada na medida em que os devotos são considerados. Trata-se de uma perspectiva que, pouco a pouco, ganhou corpo e hoje tem ares de consenso, apesar das diferenças. Mas não foi fácil concluir que só há santo quando há devotos. Não foi da noite para o dia que os pesquisadores começaram a investir tempo e teoria na ideia de investigar como se tornou possível a construção de um dos maiores centros de romaria do Brasil. Se fosse pertinente localizar um pioneiro nesse novo olhar, seria justo citar o artigo de Douglas Monteiro, de 1977: "Sabe-se hoje bastante a respeito de Cícero, das figuras que, de modo direto, o cercaram nos vários momentos de sua carreira (...). Conhece-se pouco, todavia, sobre os horizontes ideológicos e as expectativas políticas e religiosas de seus fiéis (...)."

De 1977 até hoje não foram poucos os trabalhos que estudaram Juazeiro e o padre Cícero nessa linha de interpretação antropológica, nem sempre com a originalidade exigida em teses, mas certamente com contribuições que, vistas em conjunto, evidenciam significativos avanços. Os dois livros mais recentes nessa perspectiva vieram para ficar: O Joaseiro Celeste: tempo e paisagem na devoção ao Padre Cícero (Salatiel Barbosa, 2007) e Padre Cícero: sociologia de um Padre antropologia de um Santo (Antônio Mendes Braga, 2008). Ainda no terreno dos acadêmicos, vale destacar a pequena e promissora vertente que desviou o foco do padre Cícero para as mulheres envolvidas na fundação do sagrado em Juazeiro. Inovadores, os títulos são dois: As beatas do Padre Cícero: participação feminina leiga no movimento sócio-religioso de Juazeiro do Norte (Renata Marinho, 1998) e Maria do Juazeiro: a beata do milagre (Maria do Carmo Forti, 1999). Mas seria injusto esquecer que, em Trail of Miracles (1986), infelizmente ainda não traduzido para o português, Candace Slater faz uma análise primorosa sobre as variadas e inusitadas memórias que rondam a vida da beata Maria de Araújo.

E a ficção? Também tem, e não são poucas. A primeira, se não me falha a memória, foi Mundo Perdido (Fran Martins, 1940). A maior badalação veio com Padre Cícero - o grande sucesso da TV (Aguinaldo Silva e Doc Comparato, 1984). Misturando história com ficção, a obra vendeu-se como "um enredo que prende a atenção e surpreende com os seus momentos de suspense". Os cientistas sociais não deram crédito, pois não havia pesquisa consistente, enquanto os literatos criticaram por não ser literatura. A defesa, é lógico, não ficaria difícil. Para os primeiros, era só dizer que a obra se tratava de um "romance histórico" e, para os segundos, a saída seria considerá-la um "livro de reportagem". Um aspecto curioso na ciceroniana, entre vários outros, é que poucos livros chegam à segunda edição. As mais atuais são Xilógrafos de Juazeiro (Geová Sobreira, 2007) e A terra da Mãe de Deus (Luitgarde Barros, 2008). Coincidentemente, duas obras pioneiras, cujas primeiras edições (1984 e 1988) dariam inspiração para outras pesquisas.

Existem, portanto, livros para todos os gostos, para atender a toda sorte de demandas. Não poderia ser diferente, até porque a história continua, não só no fluxo de peregrinos, mas também nos corredores de Roma, de onde se espera atualmente a produção de novas avaliações sobre o "caso de Juazeiro". Com a bagagem de anos e anos pesquisando e publicando sobre Idade Média, Jacques Le Goff lançou uma vida de São Luís, traduzida pela Record em 2003 e já em terceira edição. Aliando rigor científico com escrita fluente, ele confessou aos leitores que "a biografia histórica é uma das maneiras mais difíceis de fazer história". Talvez seja essa a razão de se ter um clássico sobre a história política do padre Cícero (Milagre em Juazeiro, do brasilianista Della Cava), enquanto ainda se espera uma biografia histórica.

Mas há os bastidores. Tão fundamentais que nem sempre aparecem. Refiro-me aos trabalhos de guarda e acessibilidade dos documentos históricos. É verdade que muita coisa do período se perdeu, entretanto muito mais se salvou. O padre Antenor, por exemplo, organizou e publicou documentos que estão com os Salesianos e, na Diocese do Crato, o padre Roserlândio vem coordenando um primoroso trabalho de arquivo. Há décadas, os professores Daniel Walker, Renato Casimiro e Renato Dantas lutam pela conservação de tudo que possa servir aos pesquisadores. Além disso, há os arquivos do Centro de Psicologia da Religião e do Memorial Padre Cícero, sem esquecer que existem os pequenos acervos particulares. Diante de tantas fontes e dos muitos avanços nos métodos de pesquisa, é fácil prever que, nos próximos anos, a frequência do número de publicações não vai decair.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura