"Deus e Ciência" - Por Sebastião Formosinho

Em ciência, por vezes, escolhem-se situações extremas para clarificar conceitos, eliminar contradições, mudar a forma de apreciar fenómenos numa fase inicial de estudo. A obra que Robert Wright nos traz sobre a "Evolução de Deus" segue de alguma forma este modo de abordagem, apesar da religião ser muito antiga, muito mais do que a ciência moderna que dela brotou. Mas neste sentido, como escreveu o prefaciador da edição portuguesa, David G. Santos, "é um convite generoso à mudança de perspectiva sobre a questão do divino".


Para Wright, a imagem que as pessoas têm dos deuses ou de Deus foi sofrendo uma evolução ao longo dos tempos, num padrão idêntico ao da selecção natural: "A cultura humana [...] - a arte, a política, a tecnologia, a religião, e assim por diante - se desenvolve de uma forma paralela à evolução biológica das espécies: surgem novos traços culturais que podem florescer ou decair, e em resultado disso mesmo podem surgir novas instituições e formas de crença que vêm depois elas a sofrer mutações".

Portanto, a tese de fundo é que o monoteísmo abraâmico cresceu organicamente a partir da fé primitiva, não tanto em resultado de um processo revolucionário, mas muito mais através de um processo de evolução - animismo, politeísmo, monolatria, monoteísmo - que emergiu de uma lógica selvagem da crença. Fé tão primitiva quanto é possível recuar na história, e Wright remonta à dos caçadores-recolectores.

Nascidas da "unidade psíquica do ser humano", todas estas fés "tentam explicar porque acontecem coisas más, e todas oferecem meios para melhorar o alegado mau estado das coisas que circundam o homem". Grande parte da religião pode ser o resultado de atribuirmos a agentes sobrenaturais as mesmas emoções humanas que evoluíram para regular o altruísmo recíproco.

A mente humana foi ""desenhada" para assentar em relações de mútuo benefício com outras pessoas, com quem se pode contar para coisas que vão desde a comida até a informações valiosas, passando pelo apoio social, e as quais por sua vez podem contar com elas". Em essência, no enquadramento da obra, as religiões são produtos naturais do cérebro humano, arquitectado pela selecção natural para acrescentar um sentido ao mundo.


Olhemos, por exemplo, para a forma como o autor vê o sucesso do cristianismo no Império Romano, graças à acção de S. Paulo: "pode parecer cínico explicar o crescimento de uma religião, especialmente uma religião de amor, em termos meramente comerciais, como se as religiões fossem apenas serviços de rede. Mas tais funções práticas têm um certo papel no poder da religião mesmo nos nossos dias. [...]

No mundo antigo as ligações religiosas tinham um papel muito importante no comércio. De facto, as associações gregas e romanas que eram essencialmente vocacionais - associações de carregadores ou de artesãos ou seja do que for - parecem nunca ter sido completamente seculares.

[...] A confiança na transacção da qual depende o negócio - uma confiança que hoje em dia muitas vezes assenta em leis complexas e na sua fiel aplicação - assentava na antiguidade por um lado em leis, mas muito na fé na integridade das pessoas individuais. E a amizade religiosa era um dos grandes fundamentos de tal fé".


O autor persegue uma cosmovisão não tradicionalmente religiosa, mas suficientemente religiosa para apresentar pistas de como atenuar ou suprimir o "choque" entre religiões e o choque entre a ciência e a religião. "É irónico", diz Wright, "que em vários sentidos fundamentais o Alcorão seja uma obra mais moderna do que a Bíblia e que Maomé seja uma figura mais moderna do que Moisés ou Jesus. Desde logo, em contraste com as figuras-chave da Bíblia hebraica e no Novo Testamento, não tem poderes especiais.

Ele não pode transformar um cajado numa serpente, ou água em vinho. É certo que os muçulmanos posteriores o vieram a descrever como um fazedor de milagres [...]. Mas o Maomé alcorânico, ao contrário do Jesus bíblico e de Moisés, não depende de fazer milagres como prova da proximidade com Deus".


Para Wright, quanto mais esbatidos forem os sinais de transcendência e mais débeis as marcas do divino, mais "moderna" será uma religião. Neste plano, o autor não ignora a história da ciência. Também nos finais do séc. XIX e inícios do XX, o positivismo procurou demarcar bem, através do empiricamente observável, a ciência da religião, mas viu-se a perder algo tão fundamental como a realidade da estrutura atómica e molecular da matéria, pois os átomos e as moléculas não são directamente observáveis.

Ora, neste plano extremo a que reduz a religião, Wright aborda a questão em termos de electrões. "No entanto, qual é exactamente a diferença entre a lógica da crença deles em electrões e a lógica de uma crença em Deus? Eles observam padrões no mundo físico - tais como o comportamento da electricidade - e chamam a essa fonte o "electrão". Um crente observa padrões no mundo moral (ou, pelo menos, padrões morais no mundo físico) e postula uma fonte para esses padrões, e chama a essa fonte "Deus".

"Deus" é essa coisa desconhecida que é a fonte de ordem moral, a razão de existir uma dimensão moral de vida na Terra e uma direcção moral para o tempo na Terra. [...] Sendo humanos, conceberemos sempre esta fonte da ordem moral em termos enganosamente rudimentares, mas a verdade é que poderíamos dizer o mesmo do conceito de electrão".


Neste plano Wrigth enfatiza, ao extremo, o fenómeno religioso enquanto processo cultural e moral de grupos cada vez mais alargados, que, eventualmente, atingem a tolerância religiosa e o amor universal. E é neste caminhar histórico que o autor vê um sentido de progresso: "a história das religiões nada mais é senão o espelho de uma crescente iluminação moral que tem vindo a determinar culturalmente o Homem em relação à verdade ética". Nesta evolução cultural, fruto de circunstâncias políticas, económicas e sociais, há oscilações, como as Cruzadas, a Inquisição, e mais recentemente o 11 de Setembro de 2001.

"A nossa imaginação moral", continua Wright, "foi desenhada para servir os nossos interesses, para discriminar entre aqueles em quem podemos confiar e aqueles em quem não podemos. Mas a marcha da História", refere o autor, "tem desafiado as pessoas na direcção de uma expansão do âmbito da sua simpatia e da sua imaginação moral".

O homem evolui neste sentido quando reconhece que com outros está a jogar não um jogo de soma nula, onde uns perdem e outros ganham, mas sim um jogo de soma não-nula, onde todos podem ganhar alguma coisa.

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