Periferia em nova perspectiva - Por Fábio de Castro



A dinâmica social e política da periferia de São Paulo passou por uma transformação completa nas últimas décadas e o eixo do conflito urbano foi deslocado, com a ascensão da criminalidade e a coexistência de diferentes “leis” que regulam a vida social.

Essa é uma das conclusões do livro Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo, de Gabriel de Santis Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP, com sede no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e que é também um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT).
O livro – publicado em parceria pelo CEM e pela Editora Unesp – sintetiza os resultados da tese de doutorado de Feltran, defendida em 2008 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho foi vencedor do prêmio de Melhor Tese de Doutorado em 2009 no Concurso da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).
O estudo foi fundamentado em uma extensa pesquisa etnográfica realizada no bairro paulistano de Sapopemba, a partir de 2005. Em contato prolongado com os moradores da região, Feltran produziu centenas de páginas de notas de campo, em formato de diário, e transcrições integrais de mais de 40 entrevistas em profundidade feitas com adolescentes e suas famílias, além de associações que os atendem e gestores públicos.
O pesquisador utilizou também documentação oficial e informal obtida junto a famílias, diferentes associações dos bairros, programas e políticas sociais, além de inúmeras reportagens jornalísticas sobre as periferias da cidade.
De acordo com Feltran, nos mais de três anos decorridos entre a defesa da tese e a publicação do livro, foram realizadas mais pesquisas de campo em Sapopemba, para seu pós-doutorado no CEM, que teve apoio da FAPESP. A obra agrega ainda os resultados da interlocução com vários outros pesquisadores da área.
“O livro interpreta a linha de transformações radicais às quais as periferias da cidade foram submetidas nas últimas quatro décadas. Ao analisar o percurso de tensões desse projeto nas últimas décadas, argumento no livro que o estatuto do conflito social e político ensejado pelas periferias urbanas foi deslocado”, disse à Agência FAPESP.
Segundo ele, em 1970, por exemplo, os territórios estudados eram colonizados por famílias migrantes e católicas, que ocupavam terrenos ermos, sem estrutura urbana, e que buscavam fazer a ascensão do núcleo familiar pelo trabalho masculino estável e o esforço na educação profissional dos filhos.
“O cenário daquela época, bom que se diga, era de baixo desemprego, crescimento econômico, repressão política e promessa de integração social pelo trabalho”, afirmou.
“Quarenta anos depois, as periferias da cidade estão consolidadas e suas famílias já não são extensas, nem migrantes, nem tão católicas”, disse. Após crises graves, a economia e o emprego se recuperam apenas nos últimos anos, enquanto a ditadura foi substituída pela democracia – sem que os moradores da periferia passassem a se sentir “integrados” – e a mulher ingressou definitivamente no mercado de trabalho, transformando a dinâmica familiar.
“O pentecostalismo, o ‘mundo do crime’ e as políticas sociais se expandiram enormemente pelos territórios, ao mesmo tempo. A individualização dos projetos faz a ênfase na mobilidade pelo trabalho conviver com a ênfase na ascensão via consumo. Em suma, o mundo urbano, social e político no qual cresce um rapaz das periferias que tem hoje 17 anos, e que portanto nasceu no início dos anos 1990, não tem nada a ver com o mundo que seus avós fundaram na passagem para os anos 1970”, apontou.
Segundo ele, as periferias, que eram vistas como territórios de moradia de trabalhadores, passaram a ser vistas recentemente como “territórios de bandidos”. “Se antes se apostava na integração dessa massa de trabalhadores, agora espera-se, sobretudo, contê-los”, disse. 

Menos jovens mortos

O livro é composto por narrativas, histórias de pessoas, famílias e organizações que conheceu nas áreas estudadas. “Dessas histórias, relacionadas entre si, é que extraio as análises sociológicas. Nesses temas, não creio ser possível que os trabalhos acadêmicos se isolem das dinâmicas sociais mais corriqueiras”, disse o autor.
Em contato direto com as periferias paulistanas há cerca de 15 anos, Feltran estuda esses territórios sistematicamente há uma década. O interesse surgiu durante a adolescência, vivida em um bairro de classe média na Zona Oeste da cidade, que fazia fronteira com áreas muito pobres, de um lado, e um vetor de desenvolvimento urbano importante, de outro.
“As favelas me trouxeram à sociologia, e não o contrário. No fim da década de 1990 morriam adolescentes demais nas favelas e bairros pobres de São Paulo. Conheci muitos meninos que foram assassinados aos 16, 17 ou 18 anos, nesse período. Espantava-me ver como esse fenômeno estava espraiado pela cidade, e como ele era silenciado publicamente. Resolvi estudar esse tema no meu doutorado”, afirmou.
A partir de 2004, Feltran entrou em contato com o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente “Mônica Paião Trevisan” (Cedeca), em Sapopemba, o que lhe permitiu transitar entre as formas mais capilares da sociabilidade das favelas, as dinâmicas criminais mais cotidianas e as disputas institucionais mais amplas em torno das políticas sociais e de segurança.
Ali, em 2004, ao procurar saber por que o fenômeno dos assassinatos de jovens nas periferias da cidade, até o início dos anos 2000, permanecia silenciado publicamente, Feltran obteve uma resposta surpreendente: já não morriam mais meninos nas favelas do bairro. O fato foi corroborado durante a pesquisa.
“Graças ao trabalho em conjunto com muitos colegas, constatamos que isso não estava ocorrendo somente em Sapopemba, mas também nas zonas Sul e Norte da capital, em outras áreas da Zona Leste, da região metropolitana e do interior”, disse Feltran.
Aos poucos, segundo ele, os pesquisadores envolvidos nesses estudos perceberam que nas periferias de todo o Estado de São Paulo não havia apenas uma lei regulando a vida social, mas várias.
“Vimos ali a coexistência de alguns universos morais e valorativos bastante atuantes na prática social, como os religiosos, os estatais e os do ‘mundo do crime’. Este último, sobretudo, e ao contrário do que se pode imaginar, atuava incisivamente na redução dos homicídios nos anos 2000, por meio de dispositivos de gestão implementados de modo capilar desde a presença hegemônica do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas localidades. Essa talvez tenha sido a principal surpresa da pesquisa”, afirmou.
Outra conclusão, segundo Feltran, é que as periferias e favelas de São Paulo não são, como muitos imaginam, semelhantes às que se veem em filmes como: Cidade de Deus ou Tropa de Elite. Não há, por exemplo, jovens armados nas esquinas, nem a banalização do uso da violência.
“Desde a emergência do PCC como grande regulador do ‘mundo do crime’ tanto nas cadeias quanto nas periferias da cidade, o uso da força e, sobretudo, da força letal, é controlado estritamente nas periferias de São Paulo. Não se pode mais matar, como se matava, sem aval de um integrante do Comando. Estudamos isso profundamente nos últimos anos, eu e uma série de colegas”, disse.
Grupos de pesquisadores da área, segundo Feltran, têm demonstrado também que a regulação do PCC se fortalece com o tipo de política de segurança implementada no estado nas últimas décadas, e que esta regulação da facção é a principal responsável pela queda marcante das taxas de homicídio nas periferias do Estado de São Paulo.

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