490 anos da Reforma Protestante

Humanismo e Reforma Protestante



Amanhã, dia 31 de outubro de 2007, se comemora 490 anos da Reforma Protestante. Data que mudou os rumos da História Mundial e que muitos insistem em não dar o devido valor, seja por preconceito ou por dificuldades relacionadas ao estudo da religião. Por muito tempo evitou-se a Reforma ou procurou dar a este evento um papel menor nos estudos acadêmicos. A Reforma Protestante tem como marco o dia 31 de outubro, quando Lutero apresenta suas noventa e cinco teses contra a prática da venda de indulgências. Porém, a Reforma faz parte de um longo processo que não teve apenas esse episódio e deveria, ao nosso ver, ser estudado com mais objetividade e com maior rigor científico pela Academia, sem os ranços de preconceito e partidarização (sim, na Academia existem essas coisas!).
Este texto tem como pretensão levantar o background ou o contexto histórico e social da Reforma e sus conexões com o Humanismo e o Renascimento.

O Renascimento foi o período em que se deu a Reforma Protestante. Foi a fase da evolução das artes, da pintura, da escultura, da arquitetura, da literatura e da música com características e propostas novas. A escultura e a pintura adquiriram autonomia em relação à arquitetura. As obras dos artistas retratavam a beleza, a harmonia e o movimento do corpo humano, em perfeitas construções anatômicas. A técnica da pintura desenvolveu-se rapidamente. Houve o florescimento de vários gêneros literários como a poesia, o romance, a epopéia, a história e a ciência política. A multiplicação das universidades e a invenção da imprensa de tipos móveis pelo alemão Johannes Gutemberg, permitiram uma vasta difusão do saber.

A música tornou-se uma arte independente, desenvolveram-se a música profana e a arte do canto coral. Compositores e músicos, em suas criações e interpretações, uniam a habilidade técnica a emoção. Com as riquezas acumuladas com o comércio, a burguesia italiana incentivava o embelezamento das cidades com a construção de palácios, catedrais, capelas, pontes e monumentos em praças públicas, patrocinando o desenvolvimento das artes em geral. Esse período ocorre no grande movimento histórico e cultural denominado de Humanismo (predominante na Itália entre os séculos XIV a XVI) que pode ser considerado a consciência da Renascença.

O Humanismo Renascentista apregoa a autonomia da humanidade, livre das tutelas, da Igreja, da Tradição e da Escolástica. Esse período sustenta a dignidade da natureza humana e a livre pesquisa na área científica, sem os limites impostos pela autoridade de Aristóteles, perpetuada pelo tomismo de Aquino. No século XIV, o termo “humanista” era utilizado para referir-se aos que se dedicavam ao estudo das Humanidades “Studia Humanitatis”, que, por sua vez, correspondia às Artes Liberais “Artes libero dignae”, o estudo da História, Poesia, Gramática, Retórica e Filosofia Moral. Posteriormente, a expressão passou a referir-­se àqueles que estudavam os clássicos da Antigüidade, com a finalidade de formar o estilo humanista de falar, escrever e viver. O projeto humanista buscava, em síntese a restauração da cultura clássica, a criação da nova sociedade e a valorização do ser humano. Para Nogare1, o Renascimento foi o “Pentecostes da Civilização Ocidental”.

É possível identificar três fases distintas do movimento humanista, a saber: entre os anos de 1304 a 1374 houve a fase precedente, que prenunciava o Humanismo na sua versão mais primitiva e pouco pragmática. Nessa fase, na Itália, viveu Francesco Petrarca, considerado o “pai do Humanismo”. Giovanni Bocaccio, também se sobressaiu escrevendo Decameron, sua obra-prima, precursora da literatura humanista. Entre os anos de 1374 a 1494 houve a fase intermediária marcada pela queda de Constantinopla e pela morte do filósofo Pico della Mirândola, que se distinguiu pelo seu saber enciclopédico. Sempre buscando o conhecimento sobre todos os ramos das ciências humanas, o humanista italiano defendeu dezenas de teses na área filosófica e teológica. Entre os anos de 1494 a 1564 tem-se o período áureo do Humanismo. Nesse período, a compreensão predominante era de que existia uma identidade quase essencial entre a Filosofia e a Religião e a Razão passou a ser identificada com o “Verbo Encarnado”. Essa síntese encontrou um ambiente propício nas academias dos humanistas, que se contrapunham às universidades, dominadas pelo pensamento tomista. Ao longo do tempo, a Renascença vai se tornando uma “República Culta” sem vinculação nacional, social ou religiosa, levando o ensino a se laicizar. Na Europa, grandes centros de atividade cultural como as cidades de Antuérpia, Roma, Florença, Lovain, Cambridge, Oxford e Roterdã, constituíram os principais focos de difusão cultural.

Originaram-se imitações da academia que Platão fundou como uma sociedade e escola erudita e religiosa em Atenas. O primeiro ressurgimento da idéia no Ocidente foi um reflexo do entusiasmo de Cosimo de Medici e de Ficino pelos diálogos platônicos. A partir da década de 1460, há uma associação sem caráter formal cujas reuniões eram realizadas na Villa Médici, em Careggi, imitando os encontros do Banquete de Platão. Eram patrocinadas por Lorenzo de Medici e freqüentadas por Ficino, Poliziano, Landino, entre outros. Cosimo patrocina em 1440 a fundação de uma academia, aos moldes da academia de Platão em Atenas, no século IV a.C. No governo de seu neto Lourenço, o Magnífico, sob a direção do humanista Marcilio Ficino, a Academia platônica realizou um imenso trabalho de tradução e comentário das obras de Platão. Dela participavam também eruditos bizantinos que chegaram à Itália após a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Sua biblioteca reunia uma enorme coleção de manuscritos gregos. Rabelais, escreve Gargantua e Pantagruel, obra na qual critica a educação e as táticas militares medievais. Montaigne, autor de estudos filosóficos céticos intitulados "Ensaios", na qual faz a crítica ao clero católico.

Na Inglaterra, um dos principais expoentes do Renascimento foi Thomas Morus, autor de "Utopia", obra que descreve as condições de vida da população de uma ilha imaginária onde não havia classes sociais, pobreza e propriedade privada. A obra de Morus apresenta um dos temas centrais do Humanismo: a primazia do homem. A livre determinação do indivíduo ganha precedência sobre uma essência eterna, rumo à perfeição da comunidade humana na Terra. A ilha é uma metáfora do indivíduo auto-suficiente, que nasce sozinho, em estado de natureza. Nas artes, celebra-se a beleza física e o nu que voltam a ser apreciados como nos tempos greco-romanos. Reintroduziu-se a perspectiva e a proporção nas artes visuais e utilizam os conhecimentos da ciência física nas composições pictóricas e nas esculturas. Encarnando os ideais gregos, o homem renascentista, profundamente otimista no que se refere à sua capacidade, passa a considerar a razão e as capacidades humanas como a síntese e a máxima criação da natureza, a “copula mundi”. O homem passa a ser considerado o centro do mundo, a imagem completa de todas as coisas, o livro da natureza.

Há uma mudança de ótica, perspectiva e valores. A metafísica é substituída pela introspecção. Nesse ambiente, muitos pensadores passam a criticar a visão de mundo e os valores da Teologia Medieval. O pensamento aristotélico, tão importante na Teologia Medieval, vinha sendo atacado desde o occamismo do século XIV. No campo educacional, surgem mestres preocupados com a formação do homem. Para Delumeau2, o Renascimento “foi também a descoberta da criança, da família, no sentido estrito da palavra, do casamento e da esposa. A civilização ocidental fez-­se então menos “antifeminista”, menos hostil ao amor no lar, mais sensível à fragilidade e à delicadeza da criança”. Segundo Eby3, “nenhum aspecto da vida humana ficou intacto, pois abrangeu transformações políticas, econômicas, religiosas, morais, filosóficas, literárias e nas instituições, de caráter definitivo, foi, de fato, uma revolta e uma reconstrução do Norte”.

Para Koyré4, o Humanismo do século XVI não é apenas Racionalista. Concomitantemente com o Racionalismo, o Misticismo, o Experimentalismo e o Esoterismo são estimulados. É uma época de euforia e de busca do conhecimento em todas as partes. Na Itália surge Leonardo da Vinci, gênio das artes, da ciência e da literatura; por intermédio dos seus desenhos, projetos técnicos, estudos de anatomia, engenharia e diversas invenções, encarna e representa o espírito humanista. Se Leonardo da Vinci pode ser considerado um precursor da revolução científica, é com Nicolau Copérnico, em 1543, que temos a publicação de De revolutionibus, obra que afirma o movimento da Terra em torno do Sol, abalando as concepções teológicas sobre o primado da terra como centro do universo. O movimento de descobertas científicas que se acumularam ao longo deste período pode ser remontado à “revolução astronômica”. Galileu Galilei, com uma luneta e cálculos matemáticos sofisticados para a época, confirma a teoria de Copérnico e descobre as leis da queda dos corpos. Kepler expõe em 1609 as três leis do movimento dos planetas. Nessa fase, há uma mudança na visão sobre o mundo e a crença na cosmologia aristolélico­ptolemaica entra em crise. A matemática pura progride. As conseqüências dessas descobertas afetaram as idéias sobre o homem, a ciência e as relações entre a Filosofia, a Ciência e a Religião. O universo não era compreendido como uma esfera espiritual moralmente ordenada, mas como uma máquina sujeita às leis matemáticas. A Ciência passa a ser uma disciplina experimental e autônoma em relação à fé e à Filosofia. O espírito do Renascimento e do Humanismo atravessou todos os segmentos da sociedade e a busca por liberdade impulsionou a renovação religiosa que, por várias ocasiões, se manifestou na cristandade.

O profundo interesse pela Antigüidade Clássica atraía a atenção e, em particular, o Novo Testamento. Isso levou ao surgimento de uma categoria específica de humanistas bíblicos devotados ao estudo das Escrituras em seus originais gregos e hebraicos. O humanista Reuchlin, colaborador de Lutero, destacou-se pelo estudo do hebraico, contribuindo enormemente para o estudo vétero-testamentário. Publicou a Epistolae Obscurorum Virorum, contendo escritos de diversos humanistas. Porém, dentre os humanistas, o mais proeminente foi Erasmo de Roterdã, cuja edição crítica do Novo Testamento, baseada em textos gregos, foi avidamente estudada e utilizada pelos reformadores suíços.

Para Wieacker5, o Humanismo pode ser considerado não apenas como uma Filosofia mas, sobretudo, como um programa pedagógico que buscava um regresso cultural independente e livre às fontes clássicas, sem qualquer interferência das autoridades religiosas como forma de propiciar o acesso aos estudos literários e despertar nos alunos o interesse pelo conhecimento das idéias e orientá-los para um novo tempo de descobertas. A cultura renascentista no Norte Europeu vai influenciar os Irmãos da Vida Comum, no século XII, cujo objetivo era melhorar as condições de seus semelhantes por meio da multiplicação de bons livros e da educação cuidadosa da juventude. Esta influência contribuiu para a fundação de universidades e escolas em Viena, Heidelberg, Colônia, Erfurt, Leipzig, Basiléia, Tübigen, Mogúncia, Wittenberg, Marburgo. Na Alemanha, o movimento humanista promoveu a valorização do homem, de sua liberdade e de sua consciência. O livre-arbítrio, em oposição ao determinismo, era defendido por muitos pensadores. Historicamente, esta influência humanista no cristianismo pode ser encontrada em Agostinho e Tomás de Aquino. O pensamento de Agostinho é antropológico, pois a interioridade do homem assume valores psicológicos, críticos, cosmológicos e teológicos. Pelo processo de reflexão e conquista interior, o homem se liberta e se realiza pelo árduo caminho das incertezas, lutas, quedas, recuos, tristezas e alegrias. Calvino e Lutero, Zwínglio, Melanchton, os expoentes máximos da Reforma Protestante, foram profundamente influenciados pelo Humanismo Renascentista.

Notas

1 NOGARE, 1979. p. 67.
2 DELUMEAU, Vol. I, 1994. p. 23.
3 EBY, 1976. p. 01.
4 Op. Cit. KOIRÉ, 1961. Para um aprofundamento das ambigüidades do Renascimento, ver: REALE, 1990. Vol II. p. 141-184.
5 WIEACKER, 1980. p. 90-91.

Bibliografia

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WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Lisboa, FUNDAÇÃO CALOUSTE CULBENKIAN, 1980.

Comentários

Unknown disse…
Boa noite. Sou aluno de Teologia e pretendo elaborar o meu TCC sobre arte e teologia reformada. vc pode me ajudar com alguma indicação de livros?

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