Exercícios na História

Submissão e Interesse:
O Relacionamento de Portugal e Roma a Partir de Tordesilhas

A história atual concebe a suspeita como o momento legítimo de proposição para a investigação histórica[1]. Nesse sentido, para fins de exercício escolhemos a questão sobre o Tratado de Tordesilhas[2], mais precisamente sobre os motivos que levaram os reis católicos a solicitar uma bula ao papa Alexandre VI[3]. Afirmamos como hipótese de pesquisa que o entendimento das bulas papais nesse período é fundamental para a compreensão das origens da presença européia no Novo Mundo. Demonstraremos que o entendimento sobre o comportamento de Portugal repousa em dois eixos complementares: o da submissão e do interesse.

Tordesilhas

O Tratado de Tordesilhas é um marco na história das relações políticas internacionais não apenas pelas suas repercussões, mas como ponto de partida para a expansão européia. Para Vianna5, o Tratado de Tordesilhas foi a mais importante peça de Política Internacional para o Brasil e a América Latina em toda sua história. Existem várias hipóteses sobre os motivos que levaram ao Tratado de Tordesilhas. A primeira hipótese que apresentamos é defendida por Serrão6. Para ele, o que moveu os portugueses no interesse de uma intermediação pelo papa foi, por um lado, a preocupação com as descobertas de terras por Colombo e, por outro, a possibilidade de controle de navegação das rotas interatlânticas. Esta hipótese tem caráter meramente estratégico. Seu fundamento repousa na questão da preocupação de garantia de rotas seguras para os portugueses. As terras de que se tinham algum tipo de conhecimento sobre sua existência seriam assim mantidas apenas como local de guarda para os interesses de navegação.

Porém, deve-se, naturalmente, levar em conta que Portugal é um reino da Christianitas a partir do momento em que o Papa o considera como tal e aceita ser o suserano do seu rei. Esta é a posição de Jimenez Fernández7. Para ele, A história de Portugal pode ser resumida como a história de reis católicos. A longa linhagem das ordens portuguesas deve ser levada em conta na preocupação e interesse de Portugal na intermediação de Roma. Dessa forma, a lógica das relações portuguesas é a lógica da subordinação dos interesses portugueses aos interesses da Igreja Romana e do apoio desta aos interesses portugueses como fiéis aliados e devotos seguidores. A influência política do papa, aliada a subordinação dos reis católicos aos seus ditames seriam as hipóteses mais prováveis para a busca de uma tal intermediação.

Para Boxer8, porém, as bulas papais refletem o interesse da Coroa portuguesa. Já na época dos tratados, Francisco de Vitória9 questiona a doutrina da teocracia pontifical absoluta. Esta doutrina pode ser simbolizada pela idéia de que o pontífice era o senhor incontestável do mundo espiritual e temporal. Esta Escola empenhou-se na construção da teoria dos “justos títulos”, que serviria de fundamentação ético-religiosa para o descobrimento e colonização das Índias de Castela. O fato é que a força e não o posicionamento papal garantiria as conquistas territoriais e mesmo o direito de navegação e manutenção de rotas comerciais.

Sendo assim, as duas posições, a de Boxer corroborando com Serrão e a de Jimenez Fernández devem ser vistas não como antagônicas mas complementares. Os reis católicos decerto aceitavam a autoridade papal a tinham em alta conta como podemos constatar pelo próprio Boxer10, ao apontar que o império português foi erigido sob o símbolo da bandeira da expansão cristã. Porém, somente pode ser compreendida completamente tal afirmação na justa medida de uma reciprocidade de relacionamento, como Boxer afirma: “provou-se que o que está escrito nesses documentos (bulas) segue de perto o conteúdo das solicitações preliminares de promulgação feitas pela Coroa portuguesa”.

Para fins de conclusão, podemos dizer que a coroa portuguesa tem no papado seu aliado e, ao mesmo tempo, este exerce influência na condução dos rumos de Portugal. Se há um tempo, a coroa tinha interesses comerciais e de manutenção de sua expansão e controle comercial, essa tinha no papado sua aliança de fé e submissão religiosa. As análises sobre o processo histórico devem levar em conta os múltiplos fatores e influências e determinar que situações históricas têm apenas um viés, seja ele político, econômico ou religioso não é mais possível. O entendimento histórico, tal como é concebido hoje, permite não apenas as múltiplas leituras, mas requer a complexidade da análise como hermenêutica.11

Notas

[1] A investigação histórica como “suspeita” é uma herança da Escola dos Annales. Para um aprofundamento do assunto, ver: BOURDÉ, e MARTIN, 2003.
[2] Em 1493 o papa Alexandre VI, de nacionalidade espanhola, estabeleceu a Bula Inter Coetera, um meridiano divisório, que passaria 100 léguas a oeste de Cabo Verde, onde a Espanha ficaria com as terras situadas a oeste (recebendo toda América), enquanto que Portugal ficaria com a porção leste (Oceano Atlântico). Esta pseudo-divisão provocou uma forte reação de Portugal, dando origem ao tratado de Tordesilhas, que estabelecia uma nova linha imaginária passando, agora, 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Para um aprofundamento sobre o assunto, ver: ALBUQUERQUE, 1989. p. 59-85.
[3] Alexandre VI nascido Rodrigo Borja y Borja (1431-1503). Foi Papa de 10 de Agosto 1492 ate a data da sua morte. Quando chegou à Itália adotou o nome de Rodrigo Borgia, aportuguesado para Rodrigo Bórgia. Sua família foi elevada ao poder no Vaticano com a eleição do seu tio materno, Alfonso de Borgia, como Papa Calisto III. Rodrigo Bórgia estudou Direito em Bolonha. Com a nomeação do tio para o papado, foi sucessivamente elevado a cargos religiosos: bispo, cardeal e vice-chanceler da Igreja. Serviu à Cúria Romana durante cinco papados, adquirindo experiência administrativa, influência e riqueza. A partir de 1470 ligou-se a Giovanna (Vanozza) Catanei de quem nasceram seus filhos bastardos; teve ainda por amante Giulia Farnese, mulher de Orsino Orsini. Para um aprofundamento de sua biografia, ver: PIERRARD, 1982. p. 161, 165, 167, 168, 178, 185, 195, 253.
5 VIANNA, 1949. p. 12-13.
6 Op.Cit. SERRÃO, 2º. Vol. 1980. p.190-191.
7 JIMÉNEZ FERNÁNDEZ, 1944.
8 Op.Cit. BOXER, 2002. p. 37.
9 Teólogo espanhol nascido em Vitória, província basca de Álava, histórico por sua dedicação à defesa dos direitos dos índios do Novo Mundo e à limitação das causas que justificam a guerra, uma obra constituída na afirmação de princípios éticos universais e de igualdade entre os povos. Ordenou-se dominicano e estudou teologia na Universidade de Paris, onde lecionou até voltar à Espanha (1523). Ensinou em Valladolid até assumir a cátedra de teologia da Universidade de Salamanca (1526), que ocupou até morrer, naquela cidade. Para um aprofundamento de suas idéias, ver: VITORIA, 1989. p. 299-322.
10 Op. Cit. BOXER, 2002. p. 242.
11 Para um aprofundamento da questão, ver: AROSTEGUI, 2006. p. 355-394.

Fontes

ALBUQUERQUE, Luís de (Dir). Tratado de Tordesilhas. In: BIBLIOTECA DA EXPANSÃO PORTUGUESA. Vol. 19: Tratado de Tordesilhas e Outros Documentos. Lisboa, ALFA, 1989. p. 59-85.
ALVES-MAZZOTTI, A. J. & GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. São Paulo, PIONEIRA, 1998.
AROSTÉGUI, Julio. A Pesquisa Histórica: Teoria E Método. Bauru, EDUSC, 2006.
BOURDÉ, Guy e MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. 2ª. Ed. Portugal, EUROPA-AMÉRICA, 2003.
BOXER, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. São Paulo, CIA DAS LETRAS, 2002.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. 4ª. Ed. São Paulo, PAULINAS, 1982.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. II Vols. Lisboa, EDITORIAL VERBO, 1980.
VIANNA, Hélio. História das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro, BIBLIOTECA MILITAR, 1949.
VITORIA, Francisco de. Relectio de indis. Madrid, C.S.I.C., 1989.

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