A Formação Humanista dos Reformadores



Hoje, dia 31 de outubro de 2007, é o 490º. Aniversário da Reforma Protestante. Ontem publicamos um artigo que procurou apresentar o background ou o contexto histórico e social da Reforma e suas conexões com o Humanismo e o Renascimento. Neste artigo pretendemos apresentar o contexto da formação de Calvino, Lutero, Melanchthon, Zwínglio, os maiores expoentes da Reforma Protestante.

Calvino recebeu uma educação humanista aberta à leitura dos clássicos da Antigüidade. Essa formação humanista influenciou a formulação teológica do reformador genebrino. Calvino tem sua formação neste ambiente e reflete na filologia e na interpretação de textos sua preocupação humanista. Sua hermenêutica histórica e sua preocupação contextual refletem as preocupações da época. O Humanismo Francês certamente incentivou Calvino a buscar as ferramentas para relacionar os documentos do passado e aplicá-los à sua situação. Os estudos dos clássicos são outra indicação da forte influência humanista em Calvino. Essa formação humanista clássica contribui para que Calvino valorize a cultura e possa dialogar com ela e com as ciências, dando ênfase às artes e outras manifestações para a formulação de seu pensamento.

Já Lutero tem uma formação humanista influenciada pelos Irmãos da Vida Comum, que se empenhavam pela educação da juventude e por um retorno ao cristianismo simples. Ele freqüentou a escola em Magdeburgo, mantida pelos Irmãos da Vida Comum, e lá versou-se no latim. Esse retorno ao princípio, fortemente influenciado pela atmosfera Humanista do Renascimento, era compartilhado pelos irmãos e fez parte da formação de Lutero. Na universidade de Erfurt, Lutero entra em contato com a dialética e passa a ler os antigos escritores latinos (Cícero, Virgílio, Tito Lívio, entre outros). Nessa universidade estuda as disciplinas do trivium (gramática, retórica e dialética, lógica e filosofia) e do quadrivium (aritmética, música, geometria, astronomia, física, metafísica e ética). Após a formação universitária, Lutero ingressa no mosteiro de Erfurt e dedica-se à leitura da Vulgata. Com vistas ao magistério da Ordem, interligou seus estudos com o studium generale da Universidade. Os expositores da via moderna, como Pedro d’Ailly, Gabriel Biel, foram estudados por Lutero. Ele também leciona artes liberais na Universidade de Erfurt e obtém os graus de mestre e, posteriormente, de doutor em teologia. Assume a docência de Lectura in Biblia e utiliza os recursos produzidos por humanistas, como o Psalterium Quincuplex, a tradução das cartas de Paulo por Stapulensis e, depois, o texto grego do Novo Testamento de Erasmo. Erasmo tem forte influência no pensamento dos reformadores. Ele iniciou seus estudos em Roterdã e, depois, na famosa escola de Deventer, a mais antiga e uma das melhores escolas administradas pelos Irmãos da Vida Comum. Aprendeu o latim, os grandes filósofos gregos e latinos e os escritos humanistas. Em 1492, dirige-se para a França, ingressando na Universidade de Paris e passa a lecionar a Bíblia e o Livro das Sentenças. Durante os anos de 1499 a 1500 encontrou-se com os reformadores de Oxford: More, Colet e Linacre. Mas, por meio da controvérsia que Lutero tem com Erasmo sobre o liberum arbitrium é que a influência de Erasmo no protestantismo se faz sentir. Ao refutar Erasmo, Lutero é obrigado a formular uma teologia que se verifica mais por uma via positiva pela liberdade humana nas coisas terrenas do que nas coisas divinas (salvação).

Melanchthon foi teólogo, filósofo e sobretudo educador alemão. Nascido em Bretten Baden, teve um papel decisivo na formação da Teologia da Reforma por intermédio de suas idéias humanistas e a abertura para o diálogo com as novas concepções teológicas. Nascido Phillipp Schwarzerdt, distinguiu-se nos estudos de grego e latim. Foi aluno do humanista Johannes Reuchlin, que o indicou para a Universidade de Heidelberg aos doze anos de idade. Terminou ali seus estudos no ano de 1511, como bacharel em Artes. Passou à Universidade de Tübingen, onde ingressou em 1514 com 17 anos, na Faculdade de Filosofia. Lecionou nessa universidade e escreveu então seu primeiro trabalho de importância. Novamente recomendado por Reuchlin, foi para a universidade de Wittenberg. Foi aluno de teologia de Lutero em 1519. Foi reitor da universidade de Wittenberg e diretor da Faculdade de Filosofia. Por ordem do príncipe eleitor, participou do debate religioso de 1557, em Worms, no Palatinato renano, no sudoeste da Alemanha. Melanchthon tornou-se conhecido como organizador e reformador das escolas alemãs. Por sua formação e erudição traz para a Reforma de Lutero uma capacidade argumentativa e uma abertura às idéias humanistas que possibilitam um retorno ao aristotelismo. Dentre suas obras, destacam-se: De rethorica, libri tres, Loci communes rerum theologicarum, hypotuposes theologicas, Summa doctrinae Lutheri, Libellus visitatorius, Confessio augustana, Apologia Confessionis augustanae, Altera, De philosophia oratio, Philosophiae moralis epitomes libri du, Liber de anima, Initia doctrinae physicae, Loci praecipui theologici. Melanchton fundou e reorganizou numerosas escolas na Alemanha, dando à educação um papel de prioridade e aos estudos clássicos uma importância significativa. Sua posição moderada foi extremamente valiosa nas discussões entre luteranos e calvinistas e seu papel na sistematização dos princípios da Reforma Protestante consolidaram-na. O papel do ser humano foi elevado acima da autoridade da Igreja e ao Estado competia o respeito às leis e a representação dos interesses populares.

Outro importante reformador foi Huldrych Zwínglio. Ele foi o responsável pela Reforma na Confederação Helvética e criou a base teológica e intelectual que possibilitou as reformas realizadas por Calvino. A Suíça se tornou, por causa dele, um terceiro centro da Reforma. Enquanto Zwínglio estabeleceu os primeiros fundamentos religiosos, seu trabalho foi continuado e aperfeiçoado pelo seu sucessor, Johann Heinrich Bullinger, em Zurique, e por João Calvino em Genebra, estabelecendo uma base comum da confissão calvinista na Suíça: a Confessio Helvetica (prior) de 1536, o Consensus Tigurinus de 1549 e a Confessio Helvetica de 1566. Huldrych Zwínglio ou Ulríco Zwínglio, foi educado em Weesen, Basiléia, Berna e na Universidade de Viena. Nesse período Viena era o centro do Humanismo na Europa Oriental. Em 1502, Zwínglio muda­-se para a Universidade da Basiléia, outro Centro Humanista, para formar os sacerdotes, juristas, médicos, escreventes e professores da Confederação Helvética. Depois de terminar seus estudos, Zwínglio tornou-­se, em 1506, sacerdote de Glarus, onde desempenhou seus serviços como fiel partidário do papa. Como sacerdote, acompanhou os soldados da Suíça em algumas campanhas na Itália e participou também da Batalha de Marignano , em 1515, onde os suíços sofreram uma derrota devastadora contra o rei da França, Francisco I. Essa experiência o influenciou e o aproximou do pacifismo de Erasmo de Roterdã, o qual exerceu enorme influência no pensamento e na postura de Zwínglio. No início de 1516, Erasmo e Zwínglio já demonstram estreitas relações de amizade. Desde 1510, Zwínglio participa ativamente de um ciclo de humanistas que representavam o Humanismo Suíço. Versa-se em latim, grego e hebraico para leitura da bíblia e se torna um especialista nas obras e idéias de Erasmo. Ele opõe-se à estrutura da Igreja Católica e à escolástica. Acaba por se tornar em 1516 sacerdote secular na Suíça e, dois anos mais tarde, por recomendação de humanistas suíços, foi nomeado sacerdote secular na Catedral de Zurique. Nessa cidade encontrou espaço para realizar suas idéias e concepções religiosas, políticas, sociais e educacionais. Proferiu sermões com base em um cristianismo erasmiano e, a partir de 1520, desliga-se da Igreja Católica. Sua teologia centra-se na questão da justiça de Deus, na Bíblia Sagrada (sola scriptura) e no sola Christus. Desenvolveu seus princípios teológicos em controvérsia com a Igreja Católica e, a respeito da autoridade secular, concedeu às autoridades o direito e o dever de renovar a sociedade e até de intervir nas questões eclesiásticas, desde que servissem ao povo e seguissem os preceitos bíblicos. A autoridade que não cumprisse suas tarefas poderia ser destituída pelo povo. Zwínglio contribui para a teologia protestante ao desenvolver um pensamento de maior autonomia do Estado em relação à Igreja mas, concomitantemente, maior liberdade do indivíduo, podendo esse reivindicar seus direitos junto ao Estado. Assim, podemos vislumbrar o quanto a Tradição Humanista vai influenciar algumas concepções da Reforma.

Mas, se o Humanismo vai trazer uma forte influência na Teologia dos Reformadores, estes, por sua vez, acabam por apresentar novas bases teológicas para o papel do Estado e das autoridades constituídas. Dessa forma, podemos afirmar que a transição do poder e controle da igreja passa para o homem como detentor de sua liberdade, sendo esta mediada pelas autoridades que, em uma perspectiva de respeito às leis e ao povo, submetem-se à divindade para cumprir o propósito para o qual são instituídas.


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