Pesquisa da Universidade Federal do Paraná analisa literatura em quadrinhos


O estrondo do ressurgimento das adaptações literárias em quadrinhos dá os primeiros ecos na universidade. Uma pesquisa da Universidade Federal do Paraná é um dos primeiros estudos do país a dar respostas científicas para o tema.

O mestrado, de autoria de Lielson Zeni, foi defendido na semana passada.

A pesquisa comparou o clássico "A Metamorfose", do tcheco Franz Kafka (1883-1924), com a adaptação em quadrinhos homônima feita pelo norte-americano Peter Kuper (lançada no Brasil pela Conrad).

A escolha do livro, trabalho mais lembrado de Kafka, surgiu da necessidade de abordar uma obra que aliasse quadrinhos e literatura de modo "inegável", nas palavras de Zeni.


Zeni tentou estudar o trabalho de Lourenço Mutarelli, passou para outro tema ("que recebeu o conselho de troque") até chegar à história de Gregor Samsa, homem que acordava metamorfoseado num inseto gigante (enredo da obra de Kafka, mostrado acima na versão em quadrinhos).

"Escolhi uma [obra] com que eu tivesse alguma afinidade e interesse no autor", diz ele, que mora há sete anos em Curitiba. "Além do mais, poucas coisas são mais canônicas que Kafka."

Zeni é publicitário, mas mantém um braço na área de letras e literatura, onde fez a pós-graduação. Nascido há 27 anos na cidade paranaense de Francisco Beltrão, defende que não há adaptação sem transformação.

É uma das conclusões do mestrado "A Metamorfose da Linguagem: Análise de Kafka em Quadrinhos", nome dado à pesquisa, que ficou com pouco mais de 150 páginas.

Nesta entrevista, feita por e-mail, Zeni detalha um pouco mais o estudo e fala como vê o ressurgimento do gênero literatura em quadrinhos no Brasil.

***
Blog - O que você procurou mostrar em seu estudo?
Lielson Zeni - Que a linguagem necessita de transformação quando é passada para um outro meio. O mito da fidelidade absoluta é um paradoxo: se mantivermos tudo que existe em um livro na adaptação cinematográfica, perderemos a eficiência do meio texto escrito e não teremos as habilidades do cinema. Algumas coisas necessitam ser transformadas para termos uma pretensa fidelidade da recepção. Se é que há o interesse por essa fidelidade.

Blog - Você chegou a algum tipo de conclusão?
Zeni - Uma das conclusões é que a análise de uma adaptação ajuda muito a entender a obra original. É um excelente instrumento pedagógico. Outra conclusão que tirei é que toda adaptação recupera em grande parte a história, a sinopse dos eventos de seu original e que ela tem a intenção de se parecer com o original, de lembrar o original, de criar uma ponte de contato com ele. E, talvez a mais importante, que uma adaptação é uma leitura da obra original e não a leitura definitiva.


Blog - No caso de "A Metamorfose", quais as diferenças entre a versão letrada e a feita em quadrinhos?
Zeni - Bem, tem um problema interessantíssimo de saída: Franz Kafka não queria que nenhuma imagem da criatura na qual Gregor Samsa se transformou fosse mostrada. Aqui já temos uma diferença obrigatória de intenção entre os dois artistas. Como eu esperava, muitas das leituras que podemos fazer a partir da prosa desaparecem ou perdem destaque na versão em quadrinhos. E -uma característica muito típica dos quadrinhos, sobretudo dos quadrinhos norte-americanos- a versão em quadrinhos é mais veloz. Os eventos acontecem de modo muito mais rápido que notexto, o que causa uma outra percepção da história.

Blog - Qual -ou quais- a diferença que você vê no processo de adaptação em quadrinhos? Há algum tipo de perda ou ganho nessa transposição?

Zeni - Ao mudar de meio, muda-se a linguagem obrigatoriamente. Ao mudar uma história que está em um meio para outro, haverá perdas e haverá ganhos. No caso específico de adaptar para quadrinhos, um elemento que será comum para adaptações oriundas de qualquer meio é a imagem estática que, ao lado de outra imagem estática, cria um movimento imaginado, com provável presença de texto e imagem conjugados.


Blog - O gênero literatura em quadrinhos voltou a ganhar destaque no país. Com base em seu estudo, como você analisa as adaptações que foram feitas de um, dois anos para cá?
Zeni - Acho que tem muita coisa boa sendo criada. Mas, no geral, elas ainda são muito paradidáticas. Poucos se aventuraram a mexer um tanto no texto. Parece um tipo de respeito pelos figurões da literatura. Fazer uma coisa bem simples, como usar um traço menos realista, como em "A Relíquia", do Marcatti. O resultado foi excelente. Tem também o trabalho do "Domínio Público", mas, como ainda não vi, prefiro não falar muito. Mas a proposta é a de fazer algo mais livre, o que é bastante interessante. Acredito que, com o tempo, teremos mais adaptações com essa intenção, o que acho muito bom, pois valoriza ainda mais a obra adaptada.

Blog - Muito se discute se quadrinhos são literatura. Você abordou o assunto na dissertação? Defende algum ponto de vista a respeito?

Zeni - Não abordei propriamente o tema, mas fica claro na minha dissertação que considero que quadrinhos e literatura são duas artes diferentes, pois são meios diferentes que usam linguagens diferentes para expressar. Creio, porém, ser possível usar instrumental teórico de literatura, teatro, cinema para analisar histórias em quadrinhos com os devidos cuidados de especificidade de cada um desses meios.


Blog - O governo federal tem priorizado adaptações literárias em quadrinhos no PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola). No seu entender, é mais eficiente o aluno ter um primeiro contato com a obra original ou com a versão em quadrinhos?
Zeni - Uma abordagem ao texto literário mediado por adaptações dele é um processo bastante interessante e revelador. Se o foco de análise é o texto literário. Creio que a leitura deve se concentrar primeiramente em analisar esse texto texto literário e só então partir para as adaptações. Nesse caso, a adaptação será tratada como paradidática.

Blog - Você sentiu alguma resistência na Federal do Paraná para estudar quadrinhos de um ponto de vista literário?

Zeni - Tive algumas dificuldades, sobretudo no começo. Um professor confundiu charge com tiras e disse ser impossível tratar do tema pelo viés da literatura. Mas, depois que passei a tratar com adaptação, não tive mais problemas.

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