Correntes Multiculturalistas: Uma Contribuição




Este artigo é uma apresentação de parte dos estudos realizados para a tese de Doutorado em Ciências da Religião na área de Práxis Religiosa e Educação na Universidade Metodista de São Paulo. Os estudos multiculturais estão na pauta das discussões em várias áreas do saber (CANDAU/2002). Para uma orientação realizamos um levantamento sobre as correntes multiculturais e suas propostas. Neste artigo objetiva-se apresentar as principais correntes multiculturais a partir do desenvolvimento histórico do termo “cultura”.

Palavras-Chave: Cultura, Multiculturalismo.

Síntese histórica do Multiculturalismo

Os estudos culturais são recentes na área educacional e transcendem a mesma. Os estudos culturais, dentre os quais insere-se o Multiculturalismo, iniciaram-se na década de 1930, nos EUA, Canadá e Europa, por conta da reivindicação de minorias étnico-culturais. Na Europa, a preocupação com Educação multicultural surgiu da alta imigração conflitiva. As políticas nacionais buscavam inserir em seus países as massas migratórias, negando suas culturas de origem. Essa atitude reverteu-se a duas décadas atrás e iniciou-se um movimento de estudos e preocupações com a Educação intercultural. Na América Latina, essa preocupação veio de grupos já existentes e possuidores de uma Cultura, além dos movimentos de Educação popular.

A conceituação do Multiculturalismo deve ser entendida a partir do próprio desdobramento do conceito de Cultura. Segundo Denys Cuche (1996/17-23), o termo “Cultura” era utilizado no século XVI e XVII para designar a parcela de terra cultivada. Já no século XVII, na França, o conceito de Cultura passou a ser utilizado para designar a formação e educação do espírito humano. Nesse sentido, o conceito “Cultura” tem caráter de uniformização e universalidade. No século XVIII, o termo “Cultura” passa a ser utilizado na Alemanha para fazer a distinção de várias culturas regionais. O conceito de “Cultura”, dentro do pensamento alemão, destaca o caráter de distinção e particularidade. Ao longo das décadas, as duas perspectivas de universalidade (França) e particularidade (Alemanha) irão se manter nos estudos sobre a cultura. No século XX, o conceito “Cultura” mantém o confronto entre universalismo e particularismo. Desta tensão surgem primeiramente duas correntes de estudos multiculturais: uma corrente universalista, que pretende adequar a uma proposta única a formação de diversos atores culturais em um “contrato de identidade cultural”, consolidando a democracia e a identidade nacional. Outra corrente, particularista, que denuncia a impossibilidade de um “contrato” e busca a pluralidade das manifestações multiculturais e o espaço para estas manifestações.

O Multiculturalismo têm, assim, suas raízes nas áreas de Antropologia, Educação e Sociologia. Estas ciências, por terem uma base comum, o estudo do homem e suas significações de grupo, constroem suas reflexões próximas umas das outras. Para Figueira (1996/23), “a ação que procura, todos os dias, reafirmar a sua condição de um ser que se distingue de todos os outros no conjunto da natureza não é outra senão a Educação” . A realização de um trabalho profícuo nas interfaces dessas ciências tem sido explorada desde muito tempo. Confirma-se isso os estudos realizados por Gusmão (1997) e por Consorte (1997). O diálogo entre Antropologia, Educação e Sociologia, percebido por muitos como uma ‘novidade’ que se instaura com as transformações da década de 70, neste século, é mais antigo que isso e reporta-se a um momento crucial da história da ciência antropológica . Intencionando promover esse resgate, Gusmão (1997) reporta-se ao final do século XIX, quando a Antropologia tentava compreender uma possível Cultura da infância e da adolescência, num debate que atinge os anos 20 e 50, travado especialmente com os pensamentos de Freud e Piaget. Em seguida, por Franz Boas, que, entre os anos 30 e 40, nos Estados Unidos, vai atuar de maneira efetiva no programa de reforma curricular daquele país. É particularmente sobre a herança culturalista de Franz Boas, e da penetração de seu pensamento no Brasil, que trata Consorte (1997/12):

“O Culturalismo como esforço de compreensão da diversidade humana constitui-se no processo de crítica ao evolucionismo, caracterizando-se, fundamentalmente, por duas rupturas: uma com o determinismo geográfico e outra com o determinismo biológico. Na medida em que Franz Boas, o responsável por sua formulação, recusa as determinações do meio físico e as determinações raciais como responsáveis pela diversidade dos modos de vida humanos, é na Cultura e no particularismo histórico que ele vai buscar as fontes dessa diversidade”.

O Culturalismo, enquanto esforço de compreensão da diversidade humana, constitui-se no processo de crítica ao evolucionismo, caracterizando-se, fundamentalmente, por duas rupturas: uma com o determinismo geográfico e outra com o determinismo biológico. Essa vertente do pensamento antropológico recusa as determinações do meio físico e racial como responsáveis pela diversidade de modos de vida, conferindo à Cultura o primado de sua explicação. Por esta causa, é nos EUA que os estudos multiculturais serão mais desenvolvidos. Andrea Semprini (1997/12) apresenta cinco aspectos dessa preocupação nos EUA:


A presença em território americano da população autóctone.
O tráfico maciço de escravos da África
A presença, entre os primeiros colonos, de grupos religiosos definidos.
A base anglo-saxônica da elite econômica e política do País.
O papel da imigração no povoamento do País.


Todos estes aspectos levaram os EUA a tomar a frente dos estudos multiculturais. Especificamente na área educacional, o Multiculturalismo pode ser remontado em uma linha histórica que tem por base a Educação marxista, existencialista, crítica e os movimentos de Educação popular, especialmente em Paulo Freire.


Conceituação e principais correntes

Como dissemos, o conceito de Multiculturalismo decorre do próprio entendimento do que seja cultura. Dar uma definição atual e abrangente de “Cultura” ainda é uma questão em aberto, sujeita a diversos enfoques e ideologias. A partir da definição clássica do antropólogo inglês (séc. XIX) Edward Burnett Tylor, os antropólogos americanos A.L. Kroeber e C. Kluckhohn citam 164 definições de Cultura, desde "comportamento aprendido" até "idéias na mente", "construto lógico", "uma ficção estatística", "um mecanismo psíquico de defesa", entre outros. Segundo Laraia (1986/28), Tylor foi o primeiro a definir Cultura numa formulação do ponto de vista antropológico. Este definiu Cultura como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética, como diríamos hoje. Cumpre registrar que o conceito surge com uma forte tendência etnocêntrica e que Tylor não estava diretamente preocupado com o tema da diversidade, conforme Laraia (1986/33):

“Mais do que preocupado com a diversidade cultural, Tylor a seu modo preocupa-se com a igualdade existente na humanidade. A diversidade é explicada por ele como o resultado da desigualdade de estágios existentes no processo de evolução. Assim, uma das tarefas da antropologia seria a de ‘estabelecer, grosso modo, uma escala de civilização’, simplesmente colocando as nações européias em um dos extremos da série e em outro as tribos selvagens, dispondo o resto da humanidade entre dois limites”.

Já em 1896, Franz Boas apresenta fortes críticas ao evolucionismo presente nos então denominados métodos comparativos em antropologia e fornece as primeiras reflexões ao que podemos chamar hoje de Antropologia Cultural moderna, mais preocupada com as características sócio-culturais dos grupamentos humanos. Com Boas, o tema da diferença entra definitivamente no campo dos estudos antropológicos, conforme atesta Cuche (1999/40-41):

“Toda a obra de Boas é uma tentativa de pensar a diferença. Para ele, a diferença fundamental entre os grupos humanos é de ordem cultural e não racial. (...) Para ele, não há diferença de ‘natureza’ (biológica) entre primitivos e civilizados, somente diferenças de Cultura, adquiridas e logo, não inatas”.

Nesta breve reflexão sobre o conceito de Cultura, é indispensável registrar a importante contribuição de Malinowski, que, segundo Cuche (1999/73-74), teve o mérito de demonstrar que não se pode estudar uma cultura analisando-a do exterior, e ainda menos à distância:

“Não se satisfazendo com a observação direta ‘em campo’, ele sistematizou o uso do método etnográfico chamado de ‘observação participante’ (expressão criada por ele), único modo de conhecimento em profundidade da alteridade cultural que poderia escapar do etnocentrismo”.

É importante também registrar a contribuição de Raymond Williams, citado por Silva (1999/131), e a sua influência nos chamados Estudos Culturais. Para ele, “a Cultura deveria ser entendida como o modo de vida global de uma sociedade, como experiência vivida de qualquer agrupamento humano”. Cultura é o conceito central da Antropologia. No entanto, isso não significa que haja consenso em sua definição. Duas são as tendências que se verificam nas definições e conceituações de Cultura. A primeira tem haver com o aspecto particular e identidário de um grupo ou mesmo de um indivíduo (herança alemã) o outro aspecto diz respeito a uma identificação universalizante com o grupo maior, nação, povo (herança francesa). Dessas duas heranças surgiram os estudos culturais e mais precisamente o Multiculturalismo.

Conforme estudos realizados, o termo Multiculturalismo não pode ser visto como único e uniforme, (vide McLaren, 2000). Multiculturalismo, segundo este autor, é um termo polissêmico, que pode abarcar desde posturas de reconhecimento da diversidade cultural sob lentes de exotismo e folclore, passando por visões de assimilação cultural, até perspectivas mais críticas de desafio a estereótipos e a processos de construção das diferenças. Porém, o conceito de Multiculturalismo tem geralmente uma conotação positiva: refere-se à coexistência enriquecedora de diversos pontos de vista, interpretações, visões, atitudes, provenientes de diferentes bagagens culturais. O conceito serve de etiqueta para uma posição intelectual aberta e flexível, baseada no respeito desta diversidade e na rejeição de todo preconceito ou hierarquia. As várias óticas devem ser consideradas em pé de igualdade; afirmações ou construções teóricas só podem ser julgadas em relação ao ponto de vista cultural. Não tem sentido falar de contradição, só de diferença. Não tem sentido falar de verdade tout court, só de verdade para um determinado grupo cultural.


O Multiculturalismo, em seu sentido amplo, apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, seja em relação ao um aspecto universalizante (Cultura de um País), seja em um aspecto particular (Cultura de grupo, etnia, gênero, etc). porém, a polifonia do conceito deu margem a vários tipos de Multiculturalismo. Os principais, segundo Mclaren (2000/110-126), são: O Multiculturalismo Conservador, que usa o termo diversidade para encobrir a ideologia de assimilação que sustenta sua posição, sendo essencialmente mono-idiomático (não trabalha a possibilidade da diferença). Além disso, define padrões de desempenho previstos no capital cultural da classe média anglo-americana para toda a juventude e não questiona o conhecimento elitizado.


O Multiculturalismo Humanista Liberal propõe a igualdade natural entre as raças, a equivalência cognitiva, prescrevendo que a igualdade está ausente não por causa da privação cultural, mas porque as oportunidades sociais e educacionais não existem. Este tipo de Multiculturalismo ainda apregoa que, modificadas as condições socioculturais e econômicas, é possível se alcançar à igualdade relativa. Estes dois primeiros são acusados de serem formas disfarçadas de Monoculturalismo (vide Semprini/1999).


O Monoculturalismo é uma corrente essencialista que apregoa a uniformização e o desaparecimento das diferenças. O Monoculturalismo diz que a realidade independe de representações, esta existe independente da linguagem; sendo a verdade é uma questão de precisão e de que todo o conhecimento é objetivo. Desta forma, o Monoculturalismo nega o Multiculturalismo e serve de contra-força a este.

Um terceiro tipo de Multiculturalismo é o Multiculturalismo Liberal de Esquerda. Este enfatiza a diferença cultural, a ênfase na igualdade das raças e nas diferenças relativas à raça, classe, gênero e sexualidade. Além disso, entende que as diferenças culturais não podem ignorar a situacionalidade histórica e social que é constitutiva do poder de representar significados.


Por fim, temos o Multiculturalismo Crítico e de Resistência. Este tipo de Multiculturalismo faz uma crítica aos outros tipos de Multiculturalismo, expondo que estes, sem uma agenda política de transformação, podem ser apenas outra forma de acomodação a uma ordem social maior e não conseguem avançar porque estão imersos no discurso da Reforma. O Multiculturalismo Crítico compreende a representação da raça, de classe e gênero como resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações e apregoa que o conflito está presente, enfatizando não apenas o jogo textual e deslocamento metafórico como forma de resistência (liberal de esquerda), mas a tarefa central de transformar as relações sociais culturais e institucionais nas quais os significados são gerados.

Os dois primeiros são entendidos e classificados por seus críticos como monoculturais. Isto é, posicionamentos ideológicos que buscam a desqualificação da diversidade e a assimilação das diferentes sub-culturas e culturas marginais através da cooptação e do mascaramento imperialista de uma classe sobre a outra.


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