Cristianismo, uma religião para o futuro por Dom Manuel Clemente



Pode parecer estranho este título:
“Cristianismo, uma religião para o futuro”, porque referido a uma realidade que já ultrapassou os dois mil anos, mesmo sem lembrar que é herdeira do Judaísmo, com quase outros tantos para trás…

Mas preferi apresentá-lo assim, por várias razões. Uma primeira, digamos, de oportunidade. Outra, mais de tipo histórico, enquanto só vamos buscar ao passado, com a nossa memória sumamente selectiva, aquilo que “interessa” ao presente, tendo em vista o futuro. E outra ainda, porque o cristianismo essencial, ou seja, o que podemos descortinar das palavras e atitudes de Jesus Cristo, se apresenta a si mesmo como dinâmico e projectivo, de futuro. Aliás, foi dentro desta ordem de idéias que o Padre António Vieira, cujo quarto centenário do nascimento agora celebramos, se abalançou a escrever uma “história do futuro”. A primeira razão, dizia, é de oportunidade. Vivemos um tempo cheio de contradições, tanto ao nível local como ao mundial. Contradições práticas, com grandes dificuldades na realização do que se anuncia, tantos são os factores divergentes ou imprevistos que se amontoam. Contradições teóricas, pois nunca soubemos tanto, do ponto de vista científico e técnico, para melhorar a vida própria e alheia, e nunca acumulamos tanta destruição dela e tantas ameaças fatais para a sobrevivência de povos inteiros, para não falar do próprio planeta. E é neste “campo minado” das nossas actuais contradições que as religiões também entram e nem sempre pelas melhores razões. Tendo geralmente simbolizado e activado as últimas expectativas e os grandes sentimentos pessoais e colectivos, confundindo-se quase com o devir e a identidade de diversos povos e culturas, acabaram por ficar como que reféns dessas mesmas histórias, para serem louvadas nas suas melhores páginas e serem acusadas nas suas mais espessas sombras.

Laicismo e fundamentalismo

No nosso caso português, o facto é patente, ainda que não unívoco. Assim, para Pombal e os pombalinos, já na segunda metade do século XVIII, parecia óbvio que todos os “estragos” que Portugal sofrera desde o século XVI se deviam aos jesuítas; muitos liberais oitocentistas alargaram a culpa às congregações religiosas em geral; e Antero, um século depois de Pombal, via o catolicismo “tridentino” como uma das causas da nossa decadência. A propaganda republicana opôs o laicismo àquilo a que chamava “clericalismo” e “jesuitismo”, etc. É certo que, em contraponto com todos estes, não faltou quem expressasse juízos positivos sobre a influência dos jesuítas e do catolicismo em geral na história nacional. Notavam aspectos menos bons, mas apuravam saldos positivos. Mesmo liberais notórios como Garrett e Oliveira Martins, em relação ao catolicismo, o primeiro, e ao Concílio de Trento, o segundo, fizeram avaliações mais optimistas. No entanto, de tudo isto sobejou para os nossos dias alguma reserva difusa em relação ao lugar da religião na sociedade, pelo menos em termos institucionais. De tal modo que alguns laivos laicistas, detectáveis aqui e ali no poder político e administrativo, ainda descriminam negativamente as realidades confessionais, mesmo quando prestam comprovados serviços à população. Estas questões de oportunidade sobressaem ultimamente, na reacção ao fundamentalismo religioso. É um facto que, em nome da religião, ainda hoje se fazem guerras e mortandades, como outras se fizeram no passado com igual pretexto. Mas é igualmente um facto que é em nome duma religião mais autêntica que tantos crentes – e primeiramente estes! – criticam tal atitude. Na verdade, a melhor compreensão do Deus das religiões monoteístas só pode considerar como inaceitável e blasfema a alegação do seu nome contra a humanidade. Basta lembrar, como o têm feito tantos líderes religiosos mais conseqüentes, que um Deus único e criador de todos por todos se interessa e a todos se propõe como relação favorável. Também cabendo lembrar que as primeiras vítimas dos fundamentalistas são freqüentemente os seus próprios correligionários, quando não aderem a posições violentas e adulteradas.

As dimensões humanizantes do cristianismo

Estas últimas considerações já nos trazem à segunda razão do meu enunciado: “Cristianismo, uma religião para o futuro”. Uma razão de tipo histórico, procurando no seu passado aquilo que nos possa transportar para o amanhã. De facto, nos dois mil anos da sua existência, o cristianismo trouxe à humanidade um conjunto de dados que reforçam a base humanística do nosso devir comum. Neste ponto, vamos até além do estritamente confessional, uma vez que tais dados se tornaram patrimônio global, como cultura e civilização, direito e convivência cívica. Comecemos por indicar a própria consideração de Deus que o cristianismo vai buscar ao que os Evangelhos nos deixam entrever da relação de Jesus Cristo com Aquele a quem chama Pai. Parecerá um aspecto puramente religioso, sem conseqüência maior na sociedade e na cultura… De facto, foi talvez o mais marcante na história cultural mediterrânica e além dela, quase criando o conceito basilar de pessoa, como hoje o temos, bem como o da sociedade a partir dela e ao seu serviço. Refiro-me, claro está, ao que distingue o cristianismo das outras religiões monoteístas, porque, afirmando com estas que só há um Deus, afirma simultaneamente que ele inclui em si mesmo a relação inter-pessoal. É, digamos assim, unitrino. Não pareça isto “teologia a mais", porque, sem isto, seria cristianismo a menos. O cristão, quando pensa em Deus a partir do que Cristo vive e diz, pensa numa vida que inteiramente se tem (o Pai), inteiramente se dá e é recebida (o Filho) e inteiramente circula entre os dois (o Espírito). O cristão entrevê assim que a relação não é algo que se acrescenta ao ser de Deus, mas antes e essencialmente o constitui. Um dos autores do Novo Testamento escreveu conseqüentemente: “Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor” (1ª Carta de João 4, 7-8). Ou seja, Deus é em si mesmo a relação absoluta e só quem se relaciona positivamente começa a conhecer e experimentar algo de Deus.
Personalismo e humanismo

Têm sido constatadas as aplicações filosóficas e culturais desta verdade cristã: pouco a pouco, foi-se definindo uma doutrina social personalista, olhando a sociedade humana à maneira da Trindade divina, realizando a unidade na pluralidade e vice-versa, sem negar nenhuma das duas; e activando o inter-relacionamento, das famílias às nações e além destas, dentro duma solidariedade e subsidiariedade tais que não permitam diluir a parte no todo e façam fluir a vida em convivência complementar e mutuamente enriquecedora. E o próprio conceito de pessoa, como consciência, liberdade e responsabilidade individuais, mas não individualistas, porque só realizáveis na mútua relação. Este indiscutível ganho que o humanismo cristão foi trazendo – apesar das contrafacções da sua história complexa – liga-se a um outro, que ainda mais uniu as coisas do Céu com as da terra. É que, além da consideração unitrinitária de Deus, o cristianismo aprendeu com Jesus Cristo que não há acesso ao divino sem passagem pelo humano, pela humanidade que ele mesmo, Cristo, assumiu. Esta incarnação é imediatamente afirmada pelo 4º Evangelho, nos seguintes termos: “E o Verbo fez-se homem [ou “carne”] e veio habitar connosco” (Jo 1, 14); e trouxe igualmente as maiores conseqüências sociais. A história da santidade cristã é sobretudo pontuada por grandes figuras que compreenderam e viveram este ponto essencial: de Francisco de Assis a João de Deus, de Vicente de Paulo a Teresa de Calcutá, o cristianismo ligou indissoluvelmente devoção e caridade, espiritualidade e solidariedade. E a linguagem corrente, em meios tocados pelo cristianismo, mesmo entre não-crentes, vai-lhe buscar as referências mais usuais, falando de “comunhão”, do “próximo”, ou do “bom samaritano” para ilustrar tais práticas – boas práticas!

Num texto de 2003, também fruto da reflexão dos responsáveis católicos de todo o mundo, o papa João Paulo II escrevia o seguinte: “Para dar novo impulso à sua história, a Europa deve reconhecer e recuperar, com fidelidade criativa, aqueles valores fundamentais, adquiridos com o contributo determinante do cristianismo, que se podem compendiar na afirmação da dignidade transcendente da pessoa humana, do valor da razão, da liberdade, da democracia, do Estado de direito e da distinção entre política e religião” (Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, nº 109). Vale a pena reparar nestes itens. Não há dúvida que os apontamentos acima deixados sobre a reflexão personalista, de Deus ao homem, elucidam a contribuição do cristianismo para a afirmação da dignidade da pessoa humana; não se deve duvidar igualmente que o reforço bíblico da alteridade do mundo em relação a Deus, que o cria “fora” de si mesmo e o entrega à responsabilidade do homem, de inteligência (divina) para inteligência (humana), abre campo à razão e à ciência; e que tais afirmações da dignidade e da responsabilidade humanas, bem como a distinção que Cristo faz entre o que se deve a César (o Estado, a sociedade) e o que se deve a Deus (o culto espiritual), tudo consolida a liberdade e a democracia, bem como a justa laicidade da sociedade política. Não precisa esta, por qualquer ressaibo laicista, de defender a laicidade que o cristianismo será o primeiro a garantir-lhe, seguindo o exemplo de Cristo.

Valorizar o futuro do mundo
Podemos deter-nos numa citação de Rodney Stark, salientando a potenciação que o cristianismo trouxe e traz à sociedade européia: “A imagem cristã de Deus é a de um ser racional que acredita no progresso humano, revelando-se à medida que os humanos desenvolvam a capacidade de compreensão. Além disso, porque Deus é um ser racional e o universo é a sua criação pessoal, o universo tem por definição uma estrutura racional, com leis estáveis que aguardam uma compreensão humana mais aperfeiçoada. Este raciocínio foi de enorme importância para muitas investigações intelectuais, inclusive para o desenvolvimento da ciência” (A vitória da razão. Lisboa, Tribuna da História, 2007, p. 60). Referi o exemplo de Cristo, antes e mais até do que a atitude concreta de todos os que, ao longo dos séculos, quiseram segui-lo. Na verdade, só muito lentamente o fermento evangélico vai levedando toda a massa dos próprios crentes. Pode mesmo dizer-se que só no fim dos tempos o cristianismo será inteiramente realizado por aqueles que o transportam, ou, melhor dizendo, são transportados por ele. O fundador do cristianismo foi o primeiro a anunciá-lo, quando adiantou o seguinte, prometendo a obra do Espírito, nos derradeiros discursos aos discípulos, tal como aparecem no 4º Evangelho: “Tenho muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora. Quando ele vier, o Espírito da Verdade, há de guiar-vos para a Verdade completa. […] Ele há de manifestar a minha glória, porque receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso é que eu disse: ‘Receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer’” (Jo 16, 12-14). Repare-se novamente na afirmação unitrinitária da obra de Deus no mundo: o Pai diz-se no Filho (Cristo), mas só no Espírito o entenderemos, o iremos entendendo, progressivamente. Como na história das nossas relações inter-pessoais, só com o tempo e a amizade (com)provada, nos vamos conhecendo mutuamente… No caso cristão, tal acontece há dois mil anos e o (re)conhecimento continua, quer teórica, quer praticamente. Há muito Evangelho a valorizar para o futuro do mundo, mesmo na relação ecumênica que o comportamento de Cristo também suporta e estimula. Perguntemo-nos, finalmente, sobre o contributo concreto que o cristianismo pode e deve dar para nosso futuro comum.

O cristianismo e a Europa

Especificamente, sobre o catolicismo e a Europa, voltemos ao documento de 2003, assinado por João Paulo II, quando diz: “A Igreja Católica está convencida de que pode dar um contributo singular em ordem à unificação [da Europa], oferecendo às instituições européias […] a ajuda de comunidades crentes que procuram realizar o compromisso de humanização da sociedade a partir do Evangelho vivido sob o signo da esperança. Nesta perspectiva, é necessária uma presença de cristãos adequadamente formados e competentes nas várias instâncias e instituições européias, que concorram, no respeito dos correctos dinamismos democráticos e através do confronto das propostas, para delinear uma convivência européia cada vez mais respeitosa de todo o homem e mulher e, por isso, conforma ao bem comum” (Ecclesia in Europa, nº 117). É grande o elenco, mas real e oportuno. Entre os “pais” da União Européia, figuram nomes como Schuman, De Gasperi ou Adenauer, que a construíram a partir duma motivação cristã, que ultrapassava os contornos, antigos ou recentes, das respectivas pátrias. Como também é lembrado, mais perto de nós, o nome de Jaques Delors, a quem não faltava idêntica inspiração. Depois, as próprias comunidades cristãs, espalhadas pelo Continente, constituem uma forte rede de solidariedade e serviço, com que se pode contar. No passado, as comunidades monásticas ensaiaram vários tipos de participação “democrática”, interna a elas. Hoje, paróquias, congregações e associações católicas, mantêm a mesma pedagogia e disponibilidade, em relação ao todo sócio-político. O que não pretendem fazer sozinhas, antes com outros, mesmo além do catolicismo estrito. Aliás, aberto à cooperação ecumênica e inter-religiosa, ao serviço da paz: “O fortalecimento da união no âmbito do continente europeu estimula os cristãos a cooperarem com todas as suas forças no processo de integração e de reconciliação através do diálogo teológico, espiritual, ético e social” (Ecclesia in Europa, nº 119). Muito a fazer, em suma, com disponibilidade reforçada pela urgência: do melhor passado para o melhor futuro! Instituto Superior da Maia (ISMAI) - Colóquio "As Religiões e a construção do futuro".
Fonte: Agência SOMA

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