Religião e Sabor compondo a mesa – Por Fábio Freire


Já existem teses e estudos no Brasil que falam da ligação entre religião e culinária, demonstrando como uma está intimamente relacionada à outra. O que, por muitos anos, passou despercebido ou tratado de forma secundária como apenas mais uma idiossincrasia do fenômeno religioso, hoje começa a despertar à atenção até da mídia.




O Carnaval passou e os olhos e atenções se voltam para a Semana Santa, feriado que celebra a ressurreição de Cristo. Na mesa do brasileiro, o prato principal da data já é tradição: o bacalhau, peixe que pode ser servido de diversas maneiras. Ele vem das águas geladas do Oceano Ártico. Com um sabor salgado e incorpado, agrada e desagrada paladares na mesma medida. Tradição nas mesas portuguesas, a iguaria une sabor, história e religiosidade em pratos diversos que podem ser preparados de variados modos. Prato principal na Sexta-Feira Santa e no almoço do Domingo de Páscoa, o bacalhau é um peixe rico em nutrientes e que tem um importante papel na gastronomia portuguesa. Não dá para falar dele sem mencionar a época das grandes navegações e os fatores religiosos e econômicos que influenciaram e ajudaram o alimento a ser uma grande marca da culinária patrícia e a ganhar a alcunha de “príncipe dos mares”.


O Brasil, claro, importou o hábito alimentar junto com o descobrimento do País e o consumo do peixe começou a ser mais difundido com a vinda da corte portuguesa para as terras tupiniquins. Hoje, o peixe é associado aos hábitos alimentares dos brasileiros. Está presente em cardápios e menus de restaurantes sofisticados especializados em alta gastronomia e é servido como petisco e tira-gosto em bares e botequins como acompanhamento para uma cerveja gelada. De pratos mais elaborados e que demandam mais atenção no preparo, como o “bacalhau à gomes de sá” ou a “moqueca de bacalhau”, a refeições mais simples como o bolinho de bacalhau, o alimento sempre deixa um rastro de sabor e angaria novos fãs e detratores por onde passa.


Salgado e curado


Os primeiros registros dão conta que o bacalhau fazia parte do regime alimentar dos vikings, na Islândia e Noruega do século IX. Fábricas de processamento do peixe secavam a iguaria ao relento. Quando o alimento estivesse pesando cinco vezes menos e ficasse duro, ele estaria pronto para o consumo dos vikings, considerados os pioneiros na descoberta da espécie. Ainda não sendo os primeiros a experimentar o peixe, os portugueses levaram a fama por introduzi-lo na dieta da população de forma regular, nos séculos XIV e XV, passando a ser uma das principais tradições culinárias de Portugal.Os portugueses foram responsáveis também por uma inovação no processo de fabricação do alimento. Eles começaram a salgar e curar a iguaria, mantendo suas características gustativas, apurando seu paladar e permitindo que o peixe agüentasse longas jornadas sem estragar. Além do sabor agradável a muitos paladares, o bacalhau se adequava às necessidades da época das grandes navegações e era a refeição ideal para servir de alimento aos desbravadores dos mares que passavam meses nos oceanos. Quando da sua descoberta, os alimentos costumavam estragar pela precária conservação e tinham sua comercialização limitada.O método de salgar e secar o alimento, além de garantir a sua perfeita conservação, mantinha todos os nutrientes do alimento, graças ao baixo teor do gordura e à alta concentração protéica da carne do animal. O sabor mais leve do que o de outros pescados salgados ajudou o bacalhau a deixar de ser apenas um alimento ligado às limitações de conservação do período para se tornar um prato requisitado nas mesas das famílias portuguesas e, posteriormente, do mundo todo. Durabilidade certa e sucesso garantido na mesa.Acessível à maioria da população, o bacalhau passou a ser uma tradição cristã ligada a hábitos e costumes religiosos dos povos católicos. As restrições alimentares que atingiam à população durante períodos religiosos que exigiam o jejum de carnes vermelhas, ou “comidas quentes”, como eram chamadas, fez com que o bacalhau fosse adotado como o alimento ideal para as restrições que acometiam a Semana Santa e o Natal. O consumo de “comidas frias” como peixes era extremamente incentivado pela Igreja e pelos comerciantes, que viam no bacalhau um alimento perfeito para estabelecer um costume ou como um excelente negócio.


Preço salgado


Mas o preço acessível do bacalhau não resistiu a fatores históricos, políticos e econômicos. A partir da Segunda Guerra Mundial, o peixe tornou-se escasso na Europa e o aumento do preço da especiaria a afastou da população, mudando o perfil de seu consumidor. De alimento popular, o bacalhau passou a ser um item raro nas mesas das classes mais baixas. Graças ao seu consumo excessivo, que foi aumentando ao longo dos séculos à medida que o alimento conquistava novos países, o bacalhau é considerado uma espécie em extinção e tem sua pesca regulamentada por uma série de tratados internacionais de controle que visam assegurar a reprodução e a preservação da espécie. Antes um alimento popular, o bacalhau luta, hoje, para se manter pelo menos como parte integrante de uma tradição que já dura séculos e não apenas um alimento nobre presente nas refeições e ceias de poucas famílias mais abastadas.



Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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