Sob o domínio do mal – Por Marcello Castilho Avellar

Batman - O cavaleiro das trevas funde HQ com clássicos.

O novo Batman cinematográfico, que estréia na sexta-feira, tem como subtítulo O cavaleiro das trevas. O nome pode provocar alguma confusão na cabeça dos fãs do herói dos quadrinhos, já que é o mesmo de uma das mais memoráveis criações estreladas por ele, a minissérie de Frank Miller lançada em 1986. Batman - O cavaleiro das trevas divide com a saga homônima dos quadrinhos o clima sombrio, o debate ético, o ilusionismo que joga com o choque entre o que o espectador vê e o que as personagens pensam. Mas o enredo do filme não tem qualquer ligação com a minissérie. Não que faça diferença - é sério candidato ao título de melhor adaptação de Batman feita para o cinema. E ao título de melhor adaptação de herói dos quadrinhos.

Se formos procurar na lista dos clássicos Batman, vamos descobrir outra obra-prima que se parece muito mais com o novo filme. É A piada mortal. Nesta graphic novel de Alan Moore e Brian Bolland, o Coringa, mais enlouquecido que nunca, atira na coluna de Barbara Gordon e a deixa paraplégica. O vilão pretende defender uma tese: não haveria fronteira entre lucidez e loucura, moralidade e imoralidade, entre correção e crime. No fundo, todos seriam psicopatas homicidas como ele, bastando um pequeno estímulo na direção certa para assumirem esta condição. O comissário James Gordon e o próprio Batman seriam suas cobaias. O último principalmente - o Batman e o Coringa seriam, no olhar do vilão, apenas lados distintos de uma mesma e sombria moeda. Gordon e Batman, contudo, acabam sendo a demonstração da tese oposta, de que é possível ao ser humano, mesmo em meio à mais dolorosa das tragédias, manter a consciência do que é certo e do que é errado, de que o mal é escolha e, portanto, responsabilidade de quem o comete.

Batman
O cavaleiro das trevas leva ao extremo esse conjunto de idéias. No início do filme, os criminosos de Gotham City estão acuados pelo assédio conjunto do “cavaleiro das trevas” Batman (Christian Bale) e de um “cavaleiro da luz”, o promotor Harvey Dent (Aaron Eckhart). Aceitam, então, a ajuda de um novo vilão, o Coringa (Heath Ledger), que, aos poucos, vai controlando completamente o mundo do crime. A força do Coringa vem de seu desapego: ele não busca dinheiro, não busca nem ao menos poder - apenas o prazer de destruir, o prazer de sujar aquilo que parece ser limpo. Batman, Dent, James Gordon e, em certo sentido, a população inteira de Gotham serão, em algum momento do filme, testados. Nem todos passarão nos testes - a tese do Coringa pode ser correta, pelo menos em relação a algumas pessoas.

Dürrenmatt e Borges

O enredo de A piada mortal não é a única inspiração de Batman - O cavaleiro das trevas. Ao ver o filme, quem conhece a dramaturgia do século 20 vai se lembrar da peça teatral: A visita da velha senhora, de Friedrich Dürrenmatt. Aqui, uma velha milionária, Claire Zachanassian, retorna à sua falida cidade natal prometendo uma fortuna à municipalidade e a cada um dos habitantes se alguém lhe fizer um pequeno favor: matar o homem que, no passado, a ofendeu e rejeitou. A cidade reage com indignação à proposta, mas aos poucos cada um de seus habitantes começa a agir na certeza de que alguém matará o suposto infrator, até o ponto em que a sobrevivência dele transforma a vida financeira daquela comunidade em algo insuportável. Um dos fios condutores de Batman - O cavaleiro das trevas é análogo. A chantagem do Coringa sempre parte do mesmo pressuposto de Claire Zachanassian: certo e errado seriam apenas valores de conveniência em determinado contexto. Mesmo as pessoas que se vêem como justas podem ser levadas a considerar que determinado valor é relativo quando está em jogo algo como a própria sobrevivência, ou a das pessoas que amam. Os amantes dos clássicos vão sentir em Batman - O cavaleiro das trevas, também, vestígios de um dos mais intrigantes contos de Jorge Luis Borges, Tema do traidor e do herói, e de sua brilhante adaptação cinematográfica, A estratégia da aranha, de Bernardo Bertolucci. Se a luta entre Batman e o Coringa é entre o bem e o mal, ou o certo e o errado, outra dicotomia admite nuances: verdadeiro e falso. Como em Borges, a felicidade das pessoas depende de forças que estão além daquela dicotomia. Como em Bertolucci, há a constatação de que a verdade nem sempre é revolucionária ou libertadora, nem sempre é capaz de fazer as pessoas seguirem em frente e ser felizes.

Fonte: http://www.new.divirta-se.uai.com.br




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