RELIGIÕES E GLOBALIZAÇÃO - Por Guilherme d’Oliveira Martins



Prefácio ao 14º volume da colecção «Cadernos de Ciência das Religiões», da autoria de José Carlos Calazans, com o título Globalização e Ciência das Religiões (Lisboa, 2008, 58 pp.).

A Ciência das Religiões tornou-se nos dias de hoje cada vez mais actual, já que o desconhecimento e a indiferença sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo, têm gerado a emergência de fanatismos, de fundamentalismos e de múltiplos apelos à irracionalidade e à violência. Não é possível compreender a diversidade das culturas e o diálogo das civilizações sem o conhecimento das diversas religiões e da sua história. Muitas vezes, nos dias de hoje, deparamo-nos com a dificuldade de compreensão de alguns conceitos fundamentais e da razão de ser de muitos símbolos e fenómenos sociais e históricos por ignorância das religiões e dos seus referentes essenciais. Conhecemos as posições adoptadas por autores insuspeitos, como Régis Debray e Umberto Eco. Para ambos, a ignorância sobre o fenómeno religioso reveste-se de uma importância muito maior do que possa parecer à primeira vista – uma vez que gera um empobrecimento cultural muito significativo de consequências imprevisíveis, já que deixa de se entender a razão de ser de conceitos, símbolos e fenómenos que caracterizam e condicionam a vida humana. Do mesmo modo, abre-se caminho a perigosas simplificações que favorecem o desrespeito, a intolerância e a indiferença.

O vazio religioso é um fenómeno conhecido ao longo da história, que conduz invariavelmente a resultados como a emergência de sucedâneos simplificadores e simplistas da espiritualidade religiosa, a partir de considerações rudimentares e empobrecedoras. O uso da violência sob invocação religiosa e o fanatismo são fenómenos que emergem nas sociedades humanas muitas vezes a partir do vazio religioso, quando os mistérios e os limites da razão se deparam com becos sem saída ou com perspectivas fechadas e intolerantes que pressupõem a recusa das respostas religiosas ou espirituais. Numa palavra, os extremos tocam-se: a cegueira e o fanatismo religiosos, de um lado, e a irredutibilidade e a indiferença sobre o fenómeno religioso geram incompreensão mútua e desejo incontrolado de ter respostas para as angústias e para as dúvidas existenciais sobre a vida.

José Carlos Calazans, ao tratar do tema das relações entre Globalização e Ciência das Religiões põe esta questão na ordem do dia. E começa por se interrogar sobre o conhecimento e a compreensão das diferentes culturas e sobre as repercussões dessa relação no tocante as temas cruciais da paz e do desenvolvimento. Se é verdade que a separação entre as Igrejas e os Estados constitui uma conquista positiva (e essencial) do mundo contemporâneo, por contraponto às teocracias e à confusão de esferas entre os fenómenos político e religioso, a verdade é que importa dar um sentido construtivo e culturalmente rico a esse conceito moderno do que preferimos designar por “laicidade”. Se é certo que o autor usa uma outra expressão para identificar esse respeito mútuo pelas esferas religiosa e política, falando de “laicismo religioso”, a verdade é que procura, correctamente, pôr a tónica no “sentido religioso do homem, sem que esteja necessariamente associado de forma explícita a um corpus religioso autenticado pelo status”. Nesse sentido, José Carlos Calazans põe a tónica no cosmopolitismo, no respeito mútuo, na “convivência pacífica entre diversas formas de viver e de pensar”. Se preferimos a expressão “laicidade”, tal deve-se à necessidade de evitar a tentação de deixar a referência confinada a um “ismo”, de carácter ideológico, que pode gerar a imposição da “indiferença” como suposto modo de preservar a autonomia de esferas.

Basta vermos, nos dias que correm, a emergência de um certo tipo de “discurso politicamente correcto”, segundo o qual as opções privadas em matéria religiosa não devem ter qualquer expressão no espaço público, o que pode ter como consequência a desvitalização da sociedade, a descaracterização das identidades e uma grave fragilização dos factores de unidade e coesão, que fundamentam a confiança. Muitas tradições e costumes que caracterizam as identidades e favorecem a coesão e a confiança têm origens religiosas e a respectiva repressão artificial, longe de favorecer o respeito mútuo e a tolerância, apenas dá lugar ao ressentimento e à fragmentação social. Não esqueçamos, por exemplo, que o calendário cristão tem como base as referências temporais que vêm das calendas romanas e que encontram as suas raízes profundas nas culturas mediterrânicas da antiguidade. Lembremo-nos que a religião islâmica funda-se na releitura das religiões judaica e cristã. E recorde-se ainda que as tentativas da Revolução francesa no sentido de criar uma nova era e um novo calendário não vingaram pelo respectivo carácter artificial e não assumido pela gente comum…

O que está em causa quando falamos de “laicidade” é a preservação e salvaguarda da autonomia individual, do respeito mútuo pela liberdade de pensamento e de crença e pela liberdade religiosa. Um são e necessário diálogo deve ser garantido, para que no espaço público razão e fé se encontrem de forma natural, enriquecendo-se mutuamente e permitindo aceitar o pluralismo de opções e convicções. Karl Popper dizia que “nunca sabemos o suficiente para ser intolerantes”, eis por que razão o pluralismo e a liberdade religiosa devem fundamentar espaços de relação, onde todos se possam sentir respeitados e onde a ética corresponda ao resultado de um diálogo e de um encontro enriquecedores e fecundos. A laicidade manifesta-se, assim, na capacidade de entender o fenómeno religioso como fenómeno humano, a diversidade religiosa, as suas raízes e a exigência de intercâmbio entre culturas e religiões, como condição de paz – como tem defendido, com especial lucidez e empenhamento, Hans Küng. E este tema da paz, ligado à “segurança e à estratégia no concerto das nações”, revela-se crucial nos tempos de hoje, uma vez que o risco de “choque de civilizações” (de que fala Samuel Huntington) é real e, a cada passo, reserva-nos más surpresas de intolerância e de violência, onde menos se espera.

A procura de uma síntese cultural e espiritual, à semelhança do “milagre grego” torna-se, assim, um tema fundamental da ordem do dia, já que precisamos de uma base comum de diálogo autêntico no espaço público. Malraux disse que “o problema do século XXI será o das religiões”, e é difícil contestá-lo, sobretudo olhando a evolução mais recente, em especial nos teatros de conflito. Afinal, o problema religioso tornou-se mais importante, em parte pela desatenção continuada a que ele foi votado. Malraux não profetiza, todavia, uma nova era religiosa, mas a necessidade de voltar a dar atenção a um fenómeno desvalorizado. Olhemos a etiologia das guerras de hoje, verifique-se que em pano de fundo estão as religiões e a diversidade de culturas, misturadas com o acesso às matérias-primas. Eis por que razão a questão religiosa tem de ser considerada como campo essencial de procura de elementos susceptíveis de ligar a humanidade.
Como refere o autor, considerando os blocos constituídos pelas potências emergentes (BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China) e pela Neo-Eurásia: torna-se evidente a importância de configurações económicas e religiosas totalmente novas, “que exigirão de todas as forças ocidentais um esforço de estudo, adaptação e síntese, numa perspectiva completamente nova que ultrapassa a visão comum da Globalização. Se nos últimos séculos a Europa e o mundo (a partir da II Grande Guerra) sofreram anos consecutivos de guerra, e só nos últimos sessenta anos os europeus têm vivido pela primeira vez num período sem guerra generalizada, devemos fazer um esforço para manter a paz”. Importa, assim, ir ao fundo da compreensão do fenómeno religioso, em toda a sua complexidade, como factor de coesão. Daí a necessidade de alargar o espaço inter-religioso de modo a favorecer a compreensão de identidades abertas, sem empobrecimento dos elementos de reconhecimento e de identificação. Ao contrário do que alguns pensam, julgando que a indiferença e o favorecimento de espaços vazios constituem soluções, importa compreender que o desenvolvimento da Ciência das Religiões pode permitir um alargamento de horizontes e uma melhor salvaguarda da liberdade religiosa – através do entendimento de temas tão diversos como o mistério, os limites do conhecimento, a relação entre a fé e a razão, a distinção entre relativismo e pluralismo, a complementaridade entre conhecimento e compreensão, a caridade, a esperança e a compaixão.

Tudo isto, ligado ao tema da globalização, suscita a questão do papel das religiões e do seu conhecimento como factores de humanização e de paz. À primeira vista suscitar-se-á, porém, a dúvida, uma vez que a emergência de fenómenos de intolerância e de fanatismo parecem contradizer essa afirmação. No entanto, é fundamental integrar a liberdade religiosa, o conhecimento dos fenómenos religiosos e o reconhecimento mútuo numa perspectiva de respeito pela “sociedade aberta” e pela existência e consagração de instituições capazes de garantir a regulação pacífica dos conflitos inerentes à vida comunitária. Charles Taylor fala, por isso, de integração voluntária e bem sucedida como proposta fundamental para a coexistência e cooperação fecundas e criadoras de comunidades e culturas diferenciadas. O reconhecimento mútuo da diversidade e das especificidades torna-se, deste modo, essencial, no sentido de uma “integração” que abra espaços de respiração e de diálogo, factores essenciais de compreensão e de enriquecimento.

E se falamos de globalização humana, capaz de conciliar coesão e diferença, regulação e conflito, prevenindo a fragmentação e a incompreensão, temos de lembrar o que tem sido salientado por Amartya Sem: do que se trata é de salvaguardar a necessidade de persuadir as pessoas, que chegam, por exemplo, à Europa, para aceitar a ideia de múltiplas identidades que se completam e enriquecem mutuamente. E Taylor critica os métodos “naturalistas”, segundo os quais os fenómenos humanos e sociais, incluindo a nossa subjectividade, apenas são compreendidos no modelo dos fenómenos naturais, usando os cânones científicos de explanação. No entanto, para a compreensão da história, como um caminho crítico da razão, é preciso não reduzir a leitura do mundo a simplificações planas. Temos de compreender a nossa própria realidade individual, os nossos valores e a nossa cultura (cf. C. Taylor, “Les Sources du Moi – La Formation de l’Identité Moderne”, Seuil, 1998).

Não podemos esquecer que o progresso científico tem sido animado pela procura infinita da verdade científica e pela consciência dos limites. Por outro lado, o novo interesse pela natureza, dos movimentos ecologistas, não constitui um passo contrário à perspectiva religiosa, antes representando uma mutação dentro dessa mesma perspectiva. A “idade secular”, que vivemos e de que também fala Charles Taylor, significa, deste modo, não que a religião esteja em declínio ou em decadência, mas que não há uma ortodoxia religiosa dominante, vivendo a religião e o cepticismo lado a lado e muitas vezes até na mesma pessoa. Daí a crítica do naturalismo e do ateísmo dogmático, procurando o mesmo pensador mostrar por que razão, ao contrário do que afirma Dawkins, a crença religiosa não é logicamente aberrante. E, longe de considerações gerais, o filósofo canadiano liga a história do pensamento e o percurso das sociedades no sentido do bem. Em suma, a modernidade caracteriza-se pelas “pressões cruzadas”, pelas influências contraditórias, e é nesse contexto, que a maior parte do mundo de hoje vive numa terra neutra, entre o ateísmo e a religiosidade, num território onde as pessoas podem vaguear entre várias escolhas e construir o seu próprio caminho (cf. C. Taylor, “A Secular Age”, Harvard University Press, 2007). Eis o campo aberto em que a Ciência das Religiões tem de se desenvolver, como impulsionadora da liberdade e do conhecimento, mas também como elemento de prevenção contra o vazio e a fragmentação, o ressentimento e a intolerância. Tem, por isso, razão o autor da obra que agora se apresenta quando afirma: “A Ciência das Religiões transcendeu-se e autonomizou-se política e cientificamente, mas tem de estar constantemente resguardada para evitar a apropriação do seu campo de pesquisa pela Antropologia, pela Sociologia e pela Teologia, e pelo assalto das teosofias e das seitas, que tanto têm entrado indiscriminadamente no meio académico como nas funções de vários estados e respectivos parlamentos”.
Humanizar a globalização, contrariar a tendência uniformizadora e a harmonização, considerar a liberdade e a justiça como elementos estruturantes da mundialização obrigam a pensar uma “globalização estável e duradoura”, constituída pelas diversas identidades “tal como se afirmam”. Mas importa ainda cuidar do que José Carlos Calazans designa como “espiritualidade laica”, ou seja, a respectiva “coerência espiritual e filosófica como garante de estabilidade, como imagem de uma psicologia do colectivo onde todos os cidadãos se igualem e se sintam abrigados”.
Já se disse que o uso da violência sob invocação religiosa e o fanatismo são fenómenos que emergem nas sociedades humanas a partir do vazio religioso, quando os mistérios e os limites da razão se deparam com becos sem saída ou com a injustiça, a intolerância e a recusa das respostas religiosas ou espirituais. A cegueira, o fanatismo religioso e o utilitarismo hedonista geram o desejo incontrolado de responder à incompreensão, à humilhação e ao subdesenvolvimento. Tudo se soma – desde o subdesenvolvimento e as carências económicas até à indiferença, passando pelo agravamento das desigualdades e pelas tensões entre a afluência e a pobreza. Não há, contudo, receitas e não é apenas o desenvolvimento de uma disciplina científica que pode responder ao risco do “choque das civilizações”, no entanto há que criar pontes que possam ser utilizadas, favorecendo a ideia de uma globalização, na qual os temas do desenvolvimento e da paz se liguem aos do conhecimento e da compreensão – como defendeu João XXIII. E não podemos esquecer que estaremos sempre a lidar com realidades muito frágeis e instáveis. Afinal, a abertura de fronteiras trouxe fantásticas potencialidades, mas gerou igualmente um inesperado risco de confronto entre valores éticos e espirituais incomensuráveis, que pode pôr em causa a afirmação universalista da eminente dignidade da pessoa humana, com um mesmo sentido essencial, mas com modos de abordagem diversos, essencialmente complementares.

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