Livro de Danièle Hervieu-Léger monta o quebra-cabeça da modernidade religiosa por – Dellano Rios



Nas ciências sociais, a religião, em diversos momentos, foi vista como objeto de estudos exemplar. A construção social da realidade, a partir de um acordo coletivo implícito e da confluência de “visões do mundo”, tornava-se mais evidente quando o pesquisador se aproximava de uma comunidade crente. Curiosamente, ao passo que essas ciências se fortaleceram (sobretudo da última metade do século XIX até meados do século seguinte), o religioso passou a chamar atenção por um motivo bem diverso: seu fim se anunciava.A palavra de ordem entre muitos estudiosos da religião no Ocidente era “secularização”. O sociólogo Max Weber a tomava por “desencantamento do mundo”, fenômeno no qual a religião se retrai numa sociedade, ao passo que acompanha o progresso técnico-científico e o desenvolvimento industrial. Cercado por um mundo que parece ter saído de uma obra de ficção-científica, o homem da modernidade se livrava da religião e deixava seu conjunto de crenças fenecer.

O tempo mostrou que a coisa não era bem assim. “O Peregrino e o Convertido: a religião em movimento” é um dos livros em que a questão do “retorno do religioso” é melhor trabalhada. Parte do mesmo mote já utilizado por outros autores, de que o sagrado não morreu nas sociedades contemporâneas, mas que se transformou e assume nova configurações. Trata-se de uma das principais obras da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, atual diretora de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Lançada em 1999, a obra já conta com traduções em italiano (2003), alemão (2004) e português (a editora lusa Gradiva lançou sua versão em 2005).

Bricolagem de crenças

“O peregrino e o convertido” é dividido em seis capítulos. Cada um deles traz desdobramentos do tema da desconstrução dos sistemas tradicionais de crença e a mobilidade religiosa contemporânea. Em conjunto, essas partes constituem um panorama, ou uma introdução, ao problema. Danièle Hervieu-Léger fixou marcos referenciais que abrangem boa parte dos estudos realizados atualmente sobre as devoções do tempo presente.Em “A religião despedaçada”, a autora prepara o terreno: são apresentadas as linhas que guiam sua teoria da modernidade religiosa. Hervieu-Léger parte de um quadro em que se assiste a uma crise de credibilidade dos sistemas religiosos (o que é particularmente claro no caso do Catolicismo Romano) e à emergência de novas formas de devoção (que abrangem desde religiões “sincréticas” ao efêmeros cultos da moda). A religião não finda com a crise dos grandes sistemas. O que desaparece é o antigo monopólio, de um modelo partilhado pelo Cristianismo, pelo Judaísmo e pelo Hinduísmo, entre outros. O que surgiu daí foi uma cultura de “bricolagem de crenças”, na qual há uma maior liberdade individual para erigir sistemas de fé.

No segundo capítulo, “O fim das identidades religiosas herdadas”, Hervieu-Léger trata de um tema que transcende a esfera religiosa. Ao falar da “crise de transmissão” que abala as religiões tradicionais, a socióloga lança luzes sobre a sociedade ocidental na contemporaneidade. Assistimos ao desaparecimento de sociedades da memória, que passam a ser governadas pelo “paradigma da imediatez”.

Nos capítulos seguintes, a autora desenvolve os conceitos de “peregrino” e “convertido” que batizam o livro. As duas figuras são evocadas em substituição ao antigo praticante regular, inserido numa territorialidade comunitária. O peregrino é o signo da religião em movimento, das múltiplas trajetórias individuais e das movências das próprias crenças. O convertido retrata a nova configuração dos antigos sistemas, que recebem novos adeptos vindos de outros sistemas.

SOCIOLOGIA"O Peregrino e o Convertido"
Danièle Hervieu-Léger
Tradução: João Batista Kreuch
2008VOZESExpansões do sagrado

Coletânea de ensaios ´In vitro, in vivo, in silicio´ explora cruzamento entre arte, ciência, tecnologia e religião

O que Danièle Hervieu-Léger expõe de maneira sistemática, em “O Peregrino e o Convertido”, aparece de maneira fragmentária, derramada pelo campo da arte, em “In vitro, in vivo, in silicio”. O livro foi organizado pelos antropólogos Amir Geiger e Leila Amaral. Ainda que a antropologia defina a área de reflexão, os artigos compilados são marcados por cruzamentos com conceitos de outras disciplinas, sobretudo as teorias das comunicações e a crítica de arte.

Grosso modo, o quadro que se delineia em “In vitro, in vivo, in silicio” é o mesmo “O Peregrino e o Convertido”, bem como a motivação das obras. Na introdução do volume, Leila Amaral fala do enfraquecimento dos laços entre arte e religião (tão antigo quanto ambas as instituições) a partir do século XIX, processo que se intensifica com a postura desconstrucionista das vanguardas do início do século XX. “Falar de arte ou de religião, tornou-se , a partir de então, duas coisas diferentes e separadas uma da outra. Juntá-las novamente tem sido considerado um equívoco, fazendo com que, no domínio institucional da arte -ou das fine arts - quase toda arte que se apresente abertamente religiosa seja excluída”, escreve.

A antropóloga esclarece que tal exclusão foi bem menos efetivo do que alguns poderiam desejar. Dai se encadeiam as diversas manifestações que são objetos de estudo do livro. Estas perpassam as artes plásticas, a literatura, a poesia, o cinema, a música pop e a cultura de massas. A heterogeneidade da mistura é, ao mesmo tempo, o ponto alto e o ponto baixo do livro. Por um lado, consegue dar uma mostra significativa da relação entre a arte e a religião no contexto da modernidade; por outro, carece de unidade de reflexão, de forma que seja estabelecer ligações entre estudos e abordagens.

“Como uma ‘estrutura biológica’”, da antropóloga Tatiana Bacal, é um dos destaques do livro. Seu texto é uma introdução precisa da cultura da e-music na condição de ritual laico. Outros destaques ficam com os ensaios de Ana Lúcia Modesto e Adriana Amaral, no qual é a cultura pop que vem ao primeiro plano. A primeira fala de Star Wars; a segunda, do escritor de ficção-científica Philip K. Dick.

ANTROPOLOGIA"In vitro, in vivo, in silicio"
Leila Amaral e Amir Geiger (org.)
2008ATTAR EDITORIAL

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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