A ética e a verdade histórica


Tornar o mundo ético é criar posssibilidades para a superação do egoísmo. Essa é a leitura que o historiador Manoel Salgado, da UFRJ, constrói dos pensamentos éticos e históricos como pontes para se entender o contemporâneo


O interesse nos debates que começam a partir de hoje, 12/07/09, na programação do XXV Simpósio Nacional de História não se restringem a algumas dezenas de acadêmicos, ou pelo menos não deveriam. Ao contrário, eles têm uma ligação muito forte com o seu cotidiano, leitor, com o da sua família, do seu vizinho, da sua cidade. Deixar isso claro é o grande desafio de quem se propõe a relacionar ética e história. “Debater ética é discutir a nossa relação enquanto humanos em sociedade”. A afirmativa enfática de um professor de currículo vasto, o presidente da Associação Nacional de História (ANPUH), Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães, defende a proximidade do assunto com o cotidiano. “Isso diz respeito ao cidadão que chegue a um hospital público e não seja atendido. E abra as páginas do jornal e perceba que há uma farra com o dinheiro público para coisas de ordem privada. Num País como o nosso, onde a confusão é absoluta entre o público e o privado, a discussão sobre a ética está na raiz dos nossos problemas”, defende. Em entrevista à reportagem do O POVO, Manoel Salgado afirmou acreditar que a construção da ética da cidadania e do espaço público é a possibilidade para enfrentar muitos dos dilemas que vivemos em qualquer grande cidade do Brasil. “Tem haver conosco, como cidadãos brasileiros”, considera. Responsável pela conferência de abertura logo mais à noite, batizada de História de Ética, Manoel Salgado é autor de vários livros e artigos em coletâneas, sobretudo acerca da Filosofia e Teoria da História. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele é também pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). Ele reconhece a falta de bibliografia específica sobre o tema do seminário, embora as várias áreas da história sempre se detenham à questão. “É uma oportunidade para Fortaleza de se projetar nacionalmente no campo da discussão sobre a ética”, lança. (Angélica Feitosa)
O POVO - A produção acadêmica sobre ética é vasta no campo da Filosofia, mas é rara na História. Até que ponto este simpósio pode contribuir para sua ampliação?
Manoel Salgado - O tema História e Ética é uma escolha oportuna em função da contemporaneidade das questões envolvidas numa discussão sobre ética hoje no Brasil. É um tema absolutamente contemporâneo e pertinente e que pode tocar várias áreas de interesse. Há relações com os problemas econômicos, de ecologia e do meio ambiente, com as discussões sobre a política. Debater ética é discutir a nossa relação enquanto humanos em sociedade. O tema classicamente é da filosofia. Foram os gregos que lançaram a discussão, tanta com ética e política como ética e história. Ela remonta a uma interrogação dos antigos. E a partir daí, ela é tomada em diferentes momentos da história, em diferentes concepções. Com o cristianismo ou com renascimento, a discussão sobre ética assume outras conotações, até chegar à contemporaneidade. Acho que os desafios que temos diante do mundo impõem repensar o que é a ética para o homem contemporâneo. Se ela foi criada entre os antigos, claro que eles pensaram nela a partir de desafios que tinham diante de si. Nós temos outros.
OP - A partir disso, quais são os principais desafios éticos do pesquisador da História?
Salgado - Esse ponto é importante. Para nós, como profissionais da História, portanto, dedicados a pensar criticamente o passado e também o presente, a discussão tem um ponto de ancoragem: pensarmos o que é a ética no trabalho do historiador. Nosso compromisso ético não é somente como os cidadãos, já que atuamos em instituições públicas e privadas, mas também sobre a vida de outros que viveram antes de nós. Como falar deles, até onde posso ir? A relação com os arquivos também gera essa preocupação. Uma discussão muito presente no Brasil é sobre a documentação da época da ditadura. Há um leque de questões que atravessam a pesquisa. Por exemplo, o que se manter o sigilo? Deve-se abrir tudo? É um mar de questões que vai ser tratado ao longo dessa semana.
OP - Esses pontos ficam ainda mais delicadas no trato da História Oral ou mesmo quando se lida com História de forma mais recente. De que forma pensar o tratamento dessas informações?
Salgado - A pesquisa de um tema envolve interesses, paixões e sentimentos de pessoas vivas e há que se ter esse cuidado em relação ao que isso pode gerar. No entanto, como pesquisadores, temos a obrigação ética de não nos privarmos da pesquisa e da investigação. É preciso estabelecer como se dará a mediação. Os compromissos éticos com a pesquisa nos obrigam a ver e falar de coisas que podem não nos agradar. Mas, por esses mesmos compromissos, é preciso que isso seja falado.
OP - Então são pelo menos dois comprometimentos éticos envolvidos...
Salgado - Exatamente. E há ainda um terceiro elemento: o público leitor. Afinal, o nosso trabalho se volta para o público. Não só naquilo que escrevemos e publicamos, mas também naquilo que dizemos em salas de aula, conferências, congressos e nos alunos que formamos. Tudo isso envolve relações éticas. Como, por exemplo, lidar com esse aluno que eu formo? É uma questão importante e que sempre me coloco.
OP - Em certas áreas que muitas vezes exigem trabalho de campo e entrevistas, como a Sociologia, Antropologia e até mesmo a História, o senhor acredita que as pesquisas em ciências humanas deveriam ser submetidas por patamares éticos, de normatização, de forma a se elaborar condutas éticas delimitadas?
Salgado - As questões devem ser examinadas segundo suas peculiaridades. Por exemplo, os colegas que trabalham com História Oral. Eles já têm desenvolvido um código mínimo de condutas éticas, de como proceder numa entrevista, da atuação e transcrição. Porque uma pesquisa com História Oral envolve o depoente diretamente. Então, até certo ponto, isso já existe. O que é diferente obviamente quando se lida com pesquisas recuadas no tempo, em que o impositivo ético é de outra ordem. Não sei se é preciso ter um código escrito, porque isso não garante uma postura ética. Temos tanto códigos de ética... A discussão é mais importante e que ela esteja presente no nosso cotidiano de trabalho.
OP - Professor, como fazer a relação entre ética e verdade histórica?
Salgado - Essa é uma discussão pesada (risos). Em primeiro lugar, quando ela surge é complemente diferente, com uma noção de que a verdade esteja fora do homem. Como se a verdade estivesse posta objetivamente no mundo e os homens fosse lá e a captassem. A verdade é fruto de um processo de interrelação humana. É no diálogo, na retórica, na discussão, no plano da linguagem e no embate que a verdade se produz. O homem moderno tendeu a produzir uma ideia de verdade curiosa. Ela existiria quase que apesar dos homens. É complicado quando se trata isso em relação ao problema da História. Muitos regimes e interpretações supõem a verdade da História e isso pode ter consequências graves e perigosas. O que não quer dizer que o historiador não trabalhe com a noção de verdade. Até porque ela é importante para o nosso trabalho. Acreditando que aquilo tem um compromisso com a verdade. Mas uma verdade que está pautada pela possibilidade da discussão, do debate. Não pode ser absoluta, porque esta é da ordem do divino e a palavra dos historiadores é a dos homens. É qualificada a partir de uma especialização, de profissionalização, mas é uma palavra humana. Sempre me lembro de um texto belíssimo do José Américo Mota Peçanha que diz: “O lugar dos homens é aquém da montanha”, ou seja, não é próximo aos deuses. Os homens estão entre si, e essa nossa contingência faz com que estejamos num terreno em que a verdade se produz pelo debate. A verdade do divino é incontestável. Mas para os homens, sempre há discussão.
OP - Dentro dessa noção e busca por uma verdade, o distanciamento histórico vem sendo questionado?
Salgado - Eu sou professor de teoria, de metodologia e esses são assuntos que levanto com meus alunos, porque diz respeito ao que eles vão fazer como profissionais. Por um lado, a ideia do distanciamento é importante. É ele que me permite colocar o outro numa relação em que eu possa vê-lo não necessariamente como uma continuidade do que eu sou. O distanciamento que permita ver o outro nas suas próprias condições. Por outro lado, há uma impossibilidade de distanciamento do historiador, porque cada um quando trabalha sobre um tema, de alguma maneira, está concernido por ele. O pesquisador escolheu, obviamente gosta do que faz, portanto, está evolvido com aquilo. É uma relação paradoxal, mas deve ser enfrentada pelo historiador. Ela o obriga a certa distância para que ele produza perspectiva histórica, crítica e percepção do outro e de si mesmo. Mas é ingênuo supor que ele não está envolvido.
OP - O tema da ética, sem dúvida, é amplo e alcança as mais variadas áreas. O desafio, portanto, é fazer com que o encontro alcance o cotidiano da cidade?
Salgado - Um tema como esse é, para nós brasileiros de 2009, de extrema contemporaneidade. Não é uma discussão puramente acadêmica e diz respeito a qualquer cidadão cuja cidade, por exemplo, não tenha transporte público ou ele não funcione. Isso diz respeito ao cidadão que chegue a um hospital público e não seja atendido. E abra as páginas do jornal e perceba que há uma farra com o dinheiro público para coisas de ordem privada. Num País como o nosso, onde a confusão é absoluta entre o público e o privado, a discussão sobre a ética está na raiz dos nossos problemas. Se construirmos a ética da cidadania e do espaço público, vamos conseguir enfrentar muitos dos dilemas que vivemos em qualquer grande cidade do Brasil. Tem haver conosco, como cidadãos brasileiros.

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