‘Tolerância religiosa tem de sempre estar na pauta do dia’ – por Ieda Rodrigues


Em pleno século 21, em uma época que a liberdade de credo é um direito sacramentado em praticamente todo mundo e surgem seitas e mais seitas, ainda se deve colocar tolerância religiosa na pauta do dia para não haver risco de intolerância. Esta é a opinião do historiador norte-americano Stuart Schwartz, que veio a Bauru ontem para lançar dois livros – um deles exatamente sobre liberdade religiosa (e a falta dela) – e proferir a palestra sobre tolerância religiosa no mundo da intolerância, na Universidade do Sagrado Coração (USC). Considerado um dos maiores brasilianistas - historiador estrangeiro que se especializa em temas brasileiros -, Stuart, que é professor de história na Universidade Yale, nos Estados Unidos, está lançando oficialmente no Brasil o livro: “Cada uma na sua lei”, que põe em xeque as interpretações de que não havia questionamento pela liberdade religiosa na Espanha e Portugal e em suas colônias entre os séculos 16 ao 18, época da Inquisição. Stuart recebeu, no ano passado, o prestigiado Prêmio Internacional Cundill em História pelo livro. Na publicação, que no Brasil é uma co-edição da editora da Universidade do Sagrado Coração (USC) com a Editora Companhia das Letras, o historiador revela que havia sim pessoas que questionavam a Inquisição, sistema que procurava manter por meios brutais a manutenção da ortodoxia católica. “Encontrei relatos de pelo menos 300 pessoas na Espanha e Portugal que questionaram a Inquisição”, frisa. O curioso, conta, é que a maioria era pessoas do povo. Ou seja, a liberdade de credo não era um movimento político ou acadêmico. “Eram pessoas, muitas que haviam viajado para o Exterior, que expressavam suas opiniões de liberdade religiosa apesar da Inquisição”, frisa. Quem não aceitava “tratamento” oferecido pela Inquisição ficava sujeito a penas que ia de ser chicoteado a morto. A situação só mudou com Iluminismo, que questionou a dominação religiosa, e com a separação entre Estado e Igreja. Para garantir a liberdade de credo e igualmente o respeito pela religião escolhida é que Stuart afirma que o assunto precisa estar em discussão sempre. “E, para isso, o mais importante é que Estado e Igreja continuem separados, e sem ingerência um no outro”, frisa. Em Bauru, ontem, Stuart também lançou o livro: “O Brasil no Império Marítimo Português”, igualmente publicado pela Edusc. E recebeu o título Doutor Honoris Causa, outorgado pela chancelaria da USC. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

JC – O seu livro “Cada um na sua lei” mostra que mesmo no período da Inquisição havia o sentimento de tolerância religiosa?

Stuart Schwartz – Na época, a exclusividade era da Igreja Católica, que era lei do Estado na Espanha, em Portugal e nas suas colônias, mas mesmo assim dentro da sociedade havia muita tolerância, pessoas que queriam conviver com pessoas de outras crenças...

JC - Mas era a minoria provavelmente...

Stuart - Sim, seguramente era uma minoria, mas é difícil saber exatamente o tamanho da minoria porque a pena de pensar assim era muito grande. Então, se tem 300 casos aqui neste livro, quantas pessoas mais pensavam assim, mas que não falavam?

JC - E qual era a classe econômica, social dessas pessoas?

Stuart - É muito difícil determinar isso. Eu acho que uma análise sociológica não serve inteiramente para isso porque muitas delas tinham alguma formação, sabia escrever, mas não necessariamente formação universitária.

JC - Então não era um pensamento acadêmico?

Stuart - Não. Havia pessoas na academia e teólogos que pensavam assim também, mas essa gente não. Essa gente era curiosa, gente que talvez havia viajado a outros países, estado no Exército, na Marinha

JC – Então essa convivência com o diferente ajudou a criar esse pensamento de liberdade religiosa?

Stuart – Exatamente. Cada um na sua lei: Um bom mouro em sua lei, o bom judeu em sua lei, o bom cristão em sua lei, todos podem se salvar. Isso é relativismo religioso, o que era completamente contra o ensinamento da Igreja Católica, que pregava que não havia salvação fora dela.

JC – E o que aconteceu a essas pessoas que defendiam liberdade de credo?

Stuart - A posição da Inquisição era que essa era uma proposição herética, ou heterodoxa, e que precisava de correção. Então, se elas aceitavam a correção, a recebiam penas menores, pode ser, látegos, trabalhos forçados, penas financeiras, etc. Mas se não, se elas argumentavam com os inquisidores, podiam ser condenadas a queimar na fogueira.

JC – O que levou o senhor a pesquisar um fato histórico tão antigo?

Stuart - Agora estamos num período moderno em que a tolerância religiosa é aceita como uma coisa da modernidade. Eu queria mostrar que isso vem de longe, e que não era um resultado só da influência das idéias francesas que chegaram no século 18, que isso era preparado já dentro da sociedade, e que a vitória da liberdade de consciência não é uma coisa permanente. Temos muitos exemplos no século 20 e século 21 de pessoas que querem reinstituir o fanatismo...

JC - Existem muitas igrejas que ainda hoje não permitem discussão, questionamento....
Stuart - Exatamente. O livro é para mostrar que a tolerância religiosa é uma batalha constante e que a sociedade não pode pensar que isso é uma vitória já conseguida...

JC - A inquisição ocorreu em um período de junção de Estado e Igreja. Hoje nós temos nas maiorias dos países democracia e mesmo assim as igrejas com traço de fanatismo têm conseguido mais e mais fiéis. Como explicar isso?

Stuart - Difícil é saber, não? Eu acho que muitas vezes o desejo para a exclusividade vem atrás dessa falta de tolerância, cada igreja quer controlar e excluir aos outros. A Igreja Católica modificou-se muito nesse sentido. O Vaticano II abriu a porta para a possibilidade de tolerância e de colaboração com outros cultos cristãos e outras religiões. Então, isso depende muito do momento político, das personalidades, das pessoas no controle das religiões no momento. A diferença, por exemplo, entre vários papas é importante também.

JC – A avaliação geral é que João Paulo II era muito mais aberto, mais tolerante do que o atual, Bento XVI, não é? Isso não é um retrocesso?

Stuart - Os últimos dois parágrafos do livro tratam exatamente sobre o Vaticano II e a tendência depois do Vaticano II, do cardeal Ratzinger, de Bento XVI, que fechou um pouco.
JC – O senhor acha que o mundo está caminhando para ampliação das tolerâncias ou temos risco de haver, em alguns países, em algumas regiões, um certo domínio de igrejas e que estabeleçam normas que levem seus fiéis a tornarem-se intolerantes em relação ao outro?

Stuart - É muito difícil saber. Eu sou muito francês nesse sentido, eu realmente creio na separação de Igreja e Estado como meio de evitar isso.

JC - Isso é ponto pacífico...

Stuart - Sim. Para que o Estado não mexa nos negócios da religião e que a religião não mexa nos negócios do Estado. Religião geralmente é sobre verdade, e política é sobre negociação. É muito difícil combinar os dois. Isto não quer dizer que as pessoas não têm a sua vida espiritual, a sua vida religiosa, mas que como maneira de governar, eu acho que a separação é a melhor coisa. Infelizmente, há uma tendência nos últimos anos de baixar essa barreira entre os dois, mesmo no meu próprio país, na última administração houve mais uma tendência de mexer na religião dentro do funcionamento do governo. Eu não estou de acordo com isso.

JC - O surgimento de seitas em muitos países, principalmente nos Estados Unidos, ajuda na tolerância ou isso não muda em nada? Muita gente pensando diferente, adorando deuses diferentes, isso ajuda ou não?

Stuart - Pode ajudar, mas pode complicar também. A luta para liberdade de consciência e tolerância é uma luta contínua, não é um ponto final. Tem que ser defendido sempre.
JC - O senhor já está preparando um outro livro, sobre o que?

Stuart - Sim, já estou no meio de um outro estudo que é sobre o Caribe. Estou fazendo uma história social dos furacões. De como as sociedades reagem frente ao desastre natural. E o Caribe é muito interessante porque tem ilhas britânicas, francesas, holandesas e espanholas. Os moradores encaram com suas próprias tradições, religiões, culturas e todos têm que confrontar o mesmo problema.

Fonte: http://www.jcnet.com.br

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