O colégio dos padres – Por José Carlos Fernandes


O Studium Theologicum se manteve em atividade durante os grandes embates ideológicos do século 20



O Studium Theologicum de Curitiba festeja esta semana 75 anos de funcionamento. Neste tempo, enfrentou a crise de vocações pós-Vaticano II e a pressão para aderir à Teologia da Libertação



O catalão Jaime Sánchez Bosch, 66 anos, é um homem de saber notável. Além de falar sete línguas vivas, domina o aramaico, o hebraico, o grego, o latim e o cirílico. Também se vira com o ugarítico. Não é tudo. Pesquisador formado pelo Instituto Bíblico e pela Universidade Lateranense, ambos em Roma, discorre sobre temas tão complexos que fariam um cientista da Nasa pedir para voltar ao grupo escolar. Jaime, claro, é um teólogo. E faz parte de uma linhagem de estudiosos que trabalham por trás do imponente “prédio amarelo” da Avenida Getúlio Vargas. São vidas em segredo. Quem passa pode não saber: fica na esquina da Rua 24 de Maio, ao lado da Paróquia do Coração de Maria, e guarda um naco da história do estado.

Pombal, Marx e a era da bioética

Adriano Zaranski, 26 anos, figura entre os 110 alunos da safra 2009 do Studium. Ele é um retrato da nova geração: está antenado com os atuais grandes temas da Teologia – como a bioética e a secularização – e sente uma pontinha de saudades dos tempos em que os seminaristas passaram a trocar a novena por um comício.

Oficialmente, o local se chama Studium Theologicum, nome que parece saído dos livros de Dan Brown, junto de anjos e demônios. Mas, para os vizinhos do Rebouças e da Água Verde, é apenas o “colégio dos padres”. E faz tempo. Em 2009, o Studium comemora 75 anos, período em que se tornou referência nacional em Teologia. É fato. Basta passar os olhos pela linha do tempo do século 20 para confirmar que a instituição figura entre os grandes fatos da vida intelectual paranaense. Em 1934, quando o colégio foi inaugurado pelos missionários claretianos, Curitiba tinha pouco mais de 100 mil habitantes, mas ainda respirava o fausto do ciclo da erva-mate – e era a cidade mais anticlerical do país, herança dos ventos do positivismo e do simbolismo, férteis por aqui tanto quanto araucárias. O Campo da Cruz – como os rincões da Avenida Ivaí, hoje Getúlio, costumavam ser chamados – parecia ideal para abrigar uma sucursal do Templo das Musas, nunca uma escola de Teologia.

Tudo indica que as condições desfavoráveis para o clero na década de 30 tenham levado o Studium a se fortalecer, montando uma biblioteca bárbara – hoje com 35 mil volumes, incluindo um acervo de obras raras do século 17 – e formando uma galeria de professores tão admiráveis que Curitiba, por pouco, já não se sentiu um jardim do Vaticano. A lista de sumidades é gorda. É o caso do biblista Francisco Van der Watter e do mariólogo João de Castro Engler, morto em 1992 e uma espécie de unanimidade entre todas as facções do clero local nas quase cinco décadas em que ali lecionou.

Mas, acima de tudo, falar do professorado do Studium é bater continência para o compositor erudito José Penalva, morto em 2002. Vanguardista na música, Penalva era tido como teólogo inflexível, temido pelas provas que equivaliam a mil penitências e pela paixão com que se entregava a um confronto com os menos ortodoxos, que em determinada época eram a maioria. Se a sobrancelha do maestro levantasse, aproximava-se o Juízo Final.

Reza a lenda que um aluno, hoje bispo, reprovou com Penalva na cadeira de Teologia Dogmática, o que serviu, anos a fio, de consolo para muitos estudantes pouco alinhados com a hierarquia. As anedotas de corredor, contudo, não fazem jus à lenha queimada pelo Studium Theologicum para se manter de portas abertas.

Crise

Em 1962, a escola deixou de ser privativa dos claretianos e passou a receber seminaristas de outras congregações e dioceses. Em poucos meses, viria o Concílio Vaticano II, cujo saldo, além de uma profunda revisão no catolicismo, levou os padres a se virarem, literalmente, para os fiéis, celebrando a missa não mais em latim, mas nos idiomas nacionais. O gesto, tão simples, quase mexeu com o eixo da Terra.

Na esteira da reviravolta litúrgica veio um abandono em série das batinas, fazendo do Studium uma espécie de purgatório onde a crise da Igreja ficou a nervos expostos. A má fase durou de 1965 a meados da década de 70, quando outro conflito já estava armado no hall da velha escola. Com o avanço da Teologia da Libertação, corrente que aproxima o marxismo da doutrina cristã, a faculdade se viu pressionada a adotar a novidade como regra. Seria mais fácil um positivista beijar a mão do vigário do Campo da Cruz. A direção do Studium se manteve firme às orientações de Roma. Nada, contudo, impediu que o nome do frei Leonardo Boff, expoente da Teologia da Libertação no Brasil, fosse tão ou mais falado ali do que o do papa, ainda que a figura barbuda do franciscano jamais tenha sido vista nos altíssimos corredores da instituição.

Para surpresa de quem acha que no prédio amarelo da Getúlio só se aprende a rezar missa, vale dizer que o local permanece, em 2009, palco de conversas que bradam aos céus, inclusive em redes virtuais, como nas melhores escolas. Numa estante da biblioteca, inclusive, dá para ver um DVD da vida de Marx ao lado de um da vida de Cristo. Podem ser assistidos em casa – mas nada que desabone o velho Studium: aos 75 anos ele se mantém, a seu modo, uma arena do conhecimento. Em caso de dúvida, na altura da Ouvidor Pardinho, pergunte sobre o “colégio dos padres”. A vizinhança nunca se engana.

Fonte: http://portal.rpc.com.br

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