Plenas emoções em “A vida secreta das abelhas” – Por Pedro Martins Freire



Carregado de emoções genuínas, "A Vida Secreta das Abelhas" cativa o espectador ao contar a busca de uma adolescente, de 14 anos, pelo seu passado para recompor o presente em meio aos fatos históricos que marcaram o início do fim da discriminação e segregação racial nos EUA

A adaptação do romance homônimo de Sue Monk Kidd, publicado no ano de 2002 e imediatamente alçado à categoria de "Best seller" (mais de dois anos na lista dos mais vendidos do "The New York Times" e 4,5 milhões de exemplares vendidos) se tornou o maior sucesso do cinema independente no ano passado. Aliás, o filme foi o recordista de prêmios da temporada. Nada mal para uma pequena produção orçada em US$ 11 milhões de dólares, quantia essa bancada por dois pequenos estúdios, que, nas mãos da Fox Seachlight, arrecadou mais de US$ 37 milhões, nos EUA. Em seu romance, Sue, nascida na racista Geórgia, Carolina do Sul, em 1948, reconstitui os fatos que marcaram a sua adolescência, vivida durante os turbulentos conflitos raciais do início dos anos 60, quando Lyndon B. Johnson assinou a Lei dos Direitos Civis, dando igualdade entre brancos e negros (a Lei do Voto só foi instituído em 1965). O romance está disponível no Brasil pela Ediouro desde 2004.

Fuga e busca

A história contada pela escritora branca e levada ao cinema pela cineasta negra Gyna Prince-Bytherwood, 40, exala um suave e prudente equilíbrio no tratamento de seus personagens. Na verdade, o enredo destaca seres humanos com suas qualidades e defeitos pessoais: apaixonados, rancorosos, pacientes, violentos, amargurados, chorosos, compreensivos, racistas, apaixonados. Uns vendo no outro o semelhante, outros discriminando os semelhantes pela cor da pele. A racionalidade entre o entendimento e a escuridão. A história de Lily é a história de uma fuga. Há motivos: ela carrega o peso do sentimento de culpa, já que se julga em delito pela morte da mãe. Fugir para saber quem ela é, quem foi sua mãe, se era amada ou não. Fere-na profundamente o que seu pai, um sujeito amargurado, violento e autoritário, diz sobre ela. Lily sabe que somente com a verdade do passado poderá ir construindo o seu futuro no presente. E ele é urgente, pois se trata de ter uma identidade e formar a sua própria história. Por isso é ela a narradora dos acontecimentos. Nessa fuga e busca de Lily se destaca um componente inesperado, o qual perpassa o filme de ponta a ponta: a espiritualidade. Ela tem a intuição repentina ao identificar o rótulo no pote de mel. E vai parar na fazenda da família Boatwright como que seguindo o cheiro do mel. Ali passado, presente e futuro se desdobrarão através dos segredos, revelações e ações de seus personagens. De certa forma, as mudanças sociais em andamento na nação norte-americana passam por dentro daquela casa. "A maioria das pessoas não tem a ideia de como a vida é complicada dentro de uma colmeia. As abelhas têm uma vida secreta da qual não sabemos nada", comenta a matriarca August (Queen Latifah, de "As Férias da Minha Vida"), ao levar Lily (Dakota Fanning, de "A Guerra dos Mundos") para conhecer o apiário. Essa é uma das metáforas do filme - os segredos e mistérios da colméia, na verdade, não muito diferentes dos da sociedade humana.

Valores deterministas

O grande elemento condutor de "A Vida Secreta das Abelhas", a espiritualidade, se acentua com a história da escultura da Virgem Maria negra. O que antes era apenas uma sugestão ansiosa para ser descoberta pelo espectador, torna-se quase uma personagem após a sua aparição em cena. Em Lily, ocorre uma espécie de comunicação através do choque do toque não concretizado, mas, depois, manifestado com o pedido. Sim, o filme coloca que há algo superior a guiar as vidas humanas. E como se verá mais adiante, o aparente acaso de tudo não passa disso mesmo, de uma aparência. Na condução da história, nada se dá ao acaso, há uma determinação em tudo. As vidas estão entrelaçadas e os seres humanos condenados a viver em função do outro. Há um peso sendo carregado por cada um dos personagens: T. Ray (Paul Bettany, de "Coração de Tinta"), a amargura de uma gravidez quando seu romantismo era apenas de fachada; May (Sophie Okonedo, de "Hotel Ruanda"), vive sem o lado do equilíbrio desde a morte da irmã gêmea; June (Alicia Keys, de "Diário de uma Babá"), a nova mulher, culta, determinada e com um pé atrás em relação a casamento; Rosaleen (Jennifer Hudson, de "Dreamgirls"), a mulher determinada a enfrentar os desafios para ser reconhecida como gente; Neil (Nate Parker), o jovem influenciado pelas mudanças e que anseia por um lugar ao sol na nova sociedade em formação. E, finalmente, August, a serenidade e a compreensão da realidade, a mulher independente que segue a intuição e procura entender o que move o semelhante. O grande sentido que exala e transborda em "A Vida Secreta das Abelhas" é a família. Equilibrada, claro. Na exposição, fora dela, nada se constrói, nada está seguro. No âmbito desse equilíbrio está contido o passado que une, os muros que lamentam, os anseios que borbulham, as verdades que se escondem e afloram, a espiritualidade imanente, a identidade que marca as existências humanas. Em "A Vida Secreta das Abelhas" a vida humana se expressa pela emoção. A vida é um grande apiário, numa metáfora da família. Mas, no apiário humano, há dificuldades a serem superadas, uma história a ser contada, uma civilização a ser evoluída. Nesse processo, o filme expõe a existência como algo doloroso pelas incompreensões que transgridem a intrigante sociedade do homem, mas perfeitamente superadas pela certeza de que a união se trata da força da superação. E que a existência humana não se dá por obra do acaso. Há algo maior a conduzir as existências. E, por conseguinte, a própria história. Cativante, emocionante, exalando reflexão com seus personagens reais, "A Vida Secreta das Abelhas" é um dos melhores filmes do ano.

Mais informações

"A Vida Secreta das Abelhas" (The secret life of bees, EUA, 2008), de Gyna Prince-Bytherwood. Com Queen Latifah, Dakota Fanning, Jennifer Hudson e Alicia Keys. Confira horários e sessões no caderno Zoeira.

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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