O mundo dos outros - Por José Cutileiro


Num referendo de iniciativa popular, versão helvética de "o povo é quem mais ordena", 57% dos suíços aprovaram uma emenda à Constituição que proíbe a construção de mais minaretes islâmicos no país, contra a preferência do Governo, de grande maioria dos deputados, da indústria, da banca, de sindicatos, de jornalistas e contra o prognóstico unânime das sondagens. Genebra, o cantão mais cosmopolita da Confederação, votou em força contra a emenda; dois cantões quase sem imigrantes foram os que mais votaram a favor.

Promotores da emenda disseram, sem rirem, que banir os minaretes não era contra o Islão mas apenas contra os extremistas. Almas bem formadas indignaram-se com o resultado por razões morais - que acontecera, afinal, à tolerância europeia? Espíritos práticos assustaram-se por outras razões - a Suíça precisa mais do resto do mundo do que o resto do mundo precisa da Suíça e como há hoje vários lugares com bancos igualmente acolhedores e discretos, elegantes estâncias de férias de Inverno com óptimas pistas de esqui, e fornecedores reputados de bens e serviços de luxo, a clientela milionária dos países do Golfo tem muito para onde mudar a sua freguesia. Já começou a ser incitada a fazê-lo quer por muçulmanos ofendidos (com alguma hipocrisia à mistura) quer por humanistas indignados. A Confederação Helvética vai estar uns tempos na berlinda e perder bastante dinheiro.

Em França, na Holanda, na Bélgica, na Áustria, na Itália, políticos da extrema-direita islamófoba e intolerante embandeiraram em arco. Mais uma vez eram eles que sabiam o que o povo verdadeiramente queria e não os agentes da democracia representativa. Partidos da direita moderada condenaram o resultado, nem sempre sem ambiguidade. O porta-voz-adjunto do partido de Sarkozy disse não ter a certeza de que os minaretes fossem precisos em lugares de culto. Havia evidentemente campanários nas igrejas mas estes pertenciam a uma herança histórica; era preciso distinguir entre religiões que já existiam em França antes da proclamação da República e religiões que tinham chegado depois. (Outros comentários de políticos houve, ao mesmo nível ético e intelectual). As igrejas portaram-se bem. O presidente da conferência episcopal alemã declarou: "É justamente porque nós, cristãos, recusamos e condenamos as restrições à liberdade religiosa impostas em países muçulmanos que devemos não só socorrer os cristãos que lá haja mas intervir igualmente a favor dos direitos dos muçulmanos que cá estão".

Referendo e boa governação não são sinónimos, a voz do povo não é a voz de Deus e é a democracia representativa que lhe mete amortecedores para nos proteger do pior. Mauriac dizia: "Não conheço a alma dos criminosos mas conheço a das pessoas sérias e é um horror!" E a costureira arménia que nos trata da roupa anda furiosa porque lá na terra dela o Presidente quer fazer as pazes com a Turquia, ao contrário do bom povo que quer guerra. A alma humana é um abismo.

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