Usos e utilidades do sagrado - Por Régis Lopes

Para os devotos, a relação com o sagrado se dá por uma interconexão de favores, nem sempre chancelada pela Igreja.





Padre Pinto foi abatido a pauladas pelos índios "tocarijus", em 1608, na serra da Ibiapaba. Para a Igreja Católica, ele era um mártir, pois ofereceu sua vida em nome de Deus. Como era de se esperar, os restos mortais transformaram-se em "relíquias". O que não se esperava era que os índios também começassem a tratar os ossos do padre como coisa sagrada, capaz de regular rituais da chuva. Em 1615, um outro jesuíta queria levar os ossos do missionário para Pernambuco, mas os índios avisaram que isso não seria possível e, se preciso, usariam armas. O jesuíta ainda conseguiu cavar a sepultura do padre, mas os índios chegaram antes e resgataram o que lá havia; assim, protegeram o que, para eles, também era sagrado.

Há, portanto, uma semelhança e uma diferença. Semelhança porque índios e missionários acreditavam na mesma relíquia. Diferença porque a crença ocorria a partir de universos distintos. Ora, esse caso se inscreve na variedade de práticas que se tornaram parte do cotidiano na colonização, ao criar mecanismos de proteção e manipular a natureza. Mas o braço ortodoxo da Igreja tentava reprimir o que estivesse fora de seus dogmas. O mundo religioso que foi se formando era feito e refeito por crenças variadas. Homens e mulheres praticavam uma negociação com o sagrado, em trocas em que o devoto retribui pelo benefício que recebeu, está recebendo ou vai receber. A dádiva do sagrado pode ser um elemento específico (a cura ou a melhoria econômica) ou a proteção contra o sofrimento e os pecados. Vale lembrar que as festas devocionais que se espalharam por campos e cidades possuem, também, um sentido orientado por essa interconexão de favores. É por isso que no Ceará ou em qualquer aglomerado do mundo onde há o Catolicismo, nota-se a presença de festas em torno do santo padroeiro, em tempos nos quais o sagrado não impede a presença do profano.

Para a burocracia canônica, não é fácil ser santo. Além das regras, há espaço para exceções. Mas o problema é que tudo depende de interesses nem sempre confessáveis. Para não ficar no plano especulativo, cito um caso recente. O arcebispo de São Salvador, dom Oscar Romero, assassinado quando celebrava, não foi canonizado, porque ele seria apenas vítima de um "crime político". Para o povo, também não é fácil habitar os altares. E, nesse caso, as exceções não confirmam a regra, porque os devotos misturam o Catolicismo com outras orientações religiosas. Fica evidente que a palavra oficial da Igreja não decide eleição. Padre Cícero foi publicamente condenado pelos bispos de seu tempo, mas as romarias não diminuíram. O povo não cedeu, mas isso é compreensível, inclusive para os católicos mais conservadores, pois Cícero era virtuoso, despertava confiança e teve a capacidade de seduzir esperas e esperanças. A perseguição que ele sofreu até ajudou, porque a própria Igreja ensina que a diversão do mal é perseguir os escolhidos de Deus.

O que não se aceita é santo sem vida exemplar, pois tudo o que foge dos modelos costuma se afastar das explicações e isso é um risco para os administradores do sagrado. Nenhuma instituição, deste ou do outro mundo, gosta de gente atuando fora da ordem. Nas páginas da história oficial, Frei Galvão é o único santo do Brasil. Outros ainda podem sê-lo, mas permanecem na fila de espera, como é o caso do Padre Cícero e de dom Expedito Lopes, ambos do Ceará. Por outro lado, há muitos que nunca terão a mínima chance, embora já sejam venerados. Jararaca nunca foi exemplo de vida. Era cangaceiro de Lampião e, para completar, tinha a fama de enfiar o seu punhal em crianças da mais tenra idade. Mesmo assim, seu túmulo, em Mossoró, se transformou em foco de romaria. Em São Benedito, ocorreu coisa semelhante: o lugar onde o ladrão João das Pedras foi enterrado passou a ser sagrado. No Cariri, a Cruz da Rufina também gerou a crença de que ali descansava uma alma milagrosa.

São casos que desafiam não apenas as instituições religiosas, mas também as instituições acadêmicas, que transformam a chamada "religiosidade popular" em objeto de pesquisa. A tentação dos pesquisadores é encontrar certas unidades, ou melhor, determinadas semelhanças entre essas crenças que depositam fé em almas não muito católicas. A via interpretativa mais plausível que se encontrou até agora foi a reflexão sobre o papel do sacrifício na escolha de quem pode aliviar os sofrimentos da vida. Jararaca cavou sua própria sepultura e foi enterrado vivo, enquanto João das Pedras, depois de morto em uma cerca elétrica, teve seu corpo carregado em desfile pela cidade, pendurado em um pedaço de pau, como um animal abatido. Rufina era acusada de adultério. Foi violentada e cortada em pedaços. Mortes dramáticas para vidas culpadas, como se o grande e derradeiro sacrifício fosse capaz de inverter o destino da alma pecadora, transformando-a em alma salvadora.

Para a Igreja, o martírio não é qualquer sofrimento. Antes de tudo, significa morrer pela causa cristã. Dom Expedito, por exemplo, pode ser tratado como mártir e, portanto, ganhar o título de santo, o que não é propriamente o caso de Jararaca, João das Pedras e Rufina, mas neste território sem fronteiras definitivas, nada é muito simples. Basta lembrar que o primeiro santo católico era um ladrão. Pediu perdão a Cristo, que estava na cruz ao lado e, além de perdoado, foi abençoado. Cada santo é, na teoria, uma espécie de intermediário entre Deus e os mortais. Na prática, o santo serve para proteger e fazer milagres em troca de promessas de quem nele acredita. De uma maneira ou de outra, o que está em jogo é o comércio com o Além.

Na memória popular, permanecem com prestígio os intermediários que produzem as graças esperadas, benefícios que vão da cura de algo incurável até a dádiva de um bom marido. Mas, o bem mais precioso que o devoto acumula é o próprio sentido que a sua vida passa a ter, para desafiar o tempo que tudo destrói e afastar a solidão que a todos assusta.


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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