A receita de Gilberto Freyre

O MESTRE DE APIPUCOS ABRIU OUTRA POSSIBILIDADE DE OLHAR O PASSADO COLONIAL AO USAR RECEITA DE BOLO PARA EXPLICAR AS RELAÇÕES SOCIAIS






Quando publicou o livro: Açúcar, 70 anos atrás, o sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) tinha certeza de que seria alvejado pela crítica. Ele sabia que pagaria um preço salgado por ter dedicado metade do texto a receitas de bolos, doces e sorvetes, assunto que não deveria sair dos caderninhos femininos. Antecipando sua defesa, o intelectual lembrava aos leitores, na introdução do livro, um conceito do jornalista e escritor Eduardo Prado (1860-1901): “O paladar defende no homem a sua personalidade nacional.”


Gilberto Freyre completa essa linha de pensamento no prefácio à terceira edição, ao dizer que “sem açúcar - seja do mais refinado ao mascavo, ao bruto ou de rapadura - não se compreende o homem do Nordeste.” Para escrever o livro, ele recolheu receitas que eram mantidas em segredo nas cozinhas das casas-grandes e sobrados dos engenhos de cana-de-açúcar. Com isso, inaugurou uma nova maneira de olhar o passado. “A historiografia clássica preza pela fonte burocrática. Açúcar é exatamente o contrário. Gilberto Freyre usou receita de bolo e o cotidiano como fontes para interpretar a sociedade. Uma vanguarda, há 70 anos. Ele traz a nova história pelo viés da antropologia”, diz o pesquisador Rômulo Xavier, professor visitante da Universidade Federal de Pernambuco e sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

O livro é definido por Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, que assina o prefácio da última edição (Global, 2007), como um importante inventário das receitas patriarcais e consideradas autenticamente brasileiras, que passavam de mãe para filha. Na maioria das vezes, oralmente, seja para manter a aura de mistério ou porque as mulheres não sabiam escrever. “Ele prestou um serviço ao publicar os modos de fazer bolos souza-leão e cabano, cocadas, quindins, compotas, geleias e sorvetes. Porém, setenta anos atrás, não foi compreendido. Os críticos questionavam como um intelectual publica um livro de receitas”, comenta. Professor de sociologia e antropologia da Universidade Católica de Pernambuco, Edijéce Martins Ferreira julga o livro importante e atual. “A cultura nordestina é toda construída em torno do açúcar, principal produto da cana, e Gilberto Freyre percebeu isso muito bem. A doçaria nasceu da abundância da matéria-prima, da mistura da cultura material com as crendices da cultura imaterial”, declara o sociólogo.

HOMENAGEM

Os 70 anos de Açúcar levaram a antropóloga Fátima Quintas a prestar homenagem ao mestre de Apipucos, bairro que escolheu como moradia, na Zona Norte do Recife. “É um dos livros dele que mais me apaixonaram, pela ousadia do tema na época, pela firmeza antropológica em mostrar a força do açúcar”, diz Fátima, pesquisadora da Fundação Gilberto Freyre. Ela passou dois anos nas investigações e seis meses para tecer o inédito Açúcar: o pão nosso de cada dia. Dividido em oito partes, o livro tem 400 páginas onde se faz um passeio completo sobre o tema – colonização, origens, engenhos, carros de boi, escravidão, função sociocultural da alimentação, provérbios, ditos populares, arabismos relacionados à alimentação e paisagem açucareira. Termina com receitas tradicionais.

Fátima pretende fazer o lançamento em abril próximo, com patrocínio do Sindaçúcar e do Sebrae. Na publicação, ela apresenta o açúcar como autoritário porque cria o latifúndio, a monocultura, a monossexualidade e o monopoder. “É uma estrutura de força única e tudo converge para o patriarca.” Açúcar, recorda Fátima Quintas, não é a primeira incursão de Gilberto Freyre no tema. “Ele já tinha mergulhado no açúcar em Casa-grande & senzala, Nordeste e Sobrados e mucambos”, cita. Gilberto Freyre Neto, coordenador de projetos da Fundação Gilberto Freyre, informa que o sociólogo tem 76 livros publicados e que Açúcar e Nordeste são considerados um tratado de ecologia humana em língua portuguesa.

Lançado em 1939 pela Editora José Olympio, Açúcar – Algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do Nordeste mostrou à sociedade, no entendimento da antropóloga, a importância do paladar como sentimento de pertencer a um lugar. Em sete décadas, a publicação teve mais quatro edições e nunca foi traduzida para outro idioma. “Essa especiaria tão imperial, nobre, oligárquica e ditadora vai gerar uma civilização nossa, histórica”, conclui a pesquisadora. A palavra é de origem árabe, as-sukkar, como explica o professor Rubem Franca, autor de Arabismos, editado em 1994.

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