Um intelectual que libertou 500 escravos - Por Marcio Renato dos Santos

Nascido há 180 anos, Luiz Gama é um exemplo de autossuperação e de como a leitura e a militância cultural, de fato, podem libertar.

A trajetória de Luiz Gama (1830-1882) mostra que força de vontade, dedicação e estudo podem driblar adversidades. Ele tinha tudo para lamentar o destino e permanecer imóvel. Filho de uma negra e de um fidalgo entranhado na sociedade baiana, Gama, quando tinha 10 anos, foi vendido pelo pai, que estava endividado. O menino, então, tornou-se escravo.


A vida, que costuma dar voltas, fez o pequeno Gama caminhar do Porto de Santos até a capital paulistana. Ele foi adquirido pelo alferes Antonio Pereira Cardoso. E na casa-grande de Cardoso a vida de Gama se modificaria, radicalmente. Lá, um jovem intelectual, chamado Antonio Rodrigues, ensinaria as primeiras letras a Gama, que demonstrou habilidade incomum com o mundo das ideias.

Aos 17 anos, Gama iria, literalmente, pagar pela sua liberdade e, em pouco tempo, assinalaria o seu nome entre os personagens mais revelantes da sociedade paulistana. Gama encontraria uma fonte de renda no funcionalismo público. Logo, ele estaria assinando artigos em diversos jornais, usando verve satírica e argumentação contundente para combater a escravidão. Escreveu e publicou poemas em que deixou bem clara a sua origem, além de ter exaltado a mulher negra: “Meus amores são lindos, cor da noite.”

Acima de tudo, explica o advogado e escritor Nelson Câmara, Luiz Gama foi um articulador, que somou forças para modificar o contexto no qual esteve inserido. Câmara, autor de: Luiz Gama: o Advogado dos Escravos, cita alguns dos intelectuais que conviviam e admiravam Gama: Rui Barbosa, Castro Alves e Joaquim Nabuco. “Luiz Gama sabia utilizar a inteligência para aglutinar forças e atingir os seus objetivos”, afirma Câmara.

E os objetivos de Gama tinham muitos pontos de contato com a luta pela libertação de todo e qualquer escravo. Gama, apesar de não ter cursado nenhuma Faculdade de Direito, devido a sua cultura jurídica, fruto de muito estudo, obteve o título de advogado provisionado. Nos tribunais, libertou mais de 500 escravos.

O jornalista e sociólogo Luiz Carlos Santos mostra, nas páginas do livro Luiz Gama, que o intelectual negro do século 19 militou, simultaneamente, contra a escravidão e contra o império. Gama foi um dos fundadores do Partido Republicano Paulista (PRP) e integrou uma loja maçônica. “Gama foi um dos poucos políticos de seu tempo que não separou a emancipação social da racial, projetando assim uma visão de vanguarda”, afirma.

Os dois livros, o de Câmara e o de Santos, ambos autores que vivem em São Paulo, chegam praticamente ao mesmo tempo nas livrarias – e esse fato não é mero acaso. 2010 marca os 180 anos de nascimento do líder abolicionista, que fez história em São Paulo. Lá, ele empresta o nome a uma loja maçônica, tem um busto no Largo do Arouche e é o patrono da cadeira de n.º 15 da Academia Paulista de Letras.

Mas por que, Brasil afora, o nome de Luiz Gama ainda não é tão conhecido como em São Paulo? Câmara acredita que o fato de muitos movimentos negros terem elegido o Zumbi como ícone, acabou ofuscando o nome de Gama. “O Zumbi teve méritos. Fundou o quilombo dos Palmares, mas o Zumbi fugiu do confronto. Já o Luiz Gama permaneceu na província de São Paulo enfrentando os senhores brancos e lutando, de igual para igual, pelo fim da escravidão”, argumenta.

Santos tem outra opinião. Para ele, o fato de Luiz Gama não figurar como um protagonista do século 19 é porque a História oficial brasileira tem como modus operandi embranquecer o passado. “Lendo a historiografia oficial, parece que no século 19 só teve um negro de expressão: Machado de Assis. Lógico que houve outros negros relevantes, e não foi apenas o Luiz Gama. A História do Brasil, como todos sabem, precisa ser revisitada”, finaliza.

* * * * *
“A vida de Luiz Gama sugere um filme, com um roteiro de superação e orgulho. Ainda que tenha vivido a mais cruel das condições humanas, ele não se dobrou à condição de escravo nem produziu o que o filósofo francês Étienne de La Boétie definiu como ‘discurso da servidão voluntária’.

Sua carta que estamos parafraseando é um raro documento, não só pela estirpe do autor, mas pelo domínio que demonstra ter sobre as palavras e a força delas na construção de sua vida, capítulo singular da história da negritude brasileira. Além de excelente prosador, Luiz Gama foi poeta e foi mais (...).

O precursor do abolicionismo, como denominou Sud Mennucci.”

Luiz Gama, de Luiz Carlos Santos. Selo Negro/Retratos do Brasil Negro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura