À procura da espiritualidade - Por Pedro Martins Freire

Confundido como filme do equivocado termo: "autoajuda" e de "mulherzinha", o drama: "Comer Rezar Amar", baseado no livro de Elizabeth Gilbert, entre altos e baixos, retrata bem a busca de uma mulher pela espiritualidade perdida.


 
Editado em 2006, "Eat Prey Love" logo se tornou o sucesso que os estadunidenses chamam de "best seller". No livro, a jornalista Elizabeth Gilbert conta como o fim de seu casamento de 10 anos desfez o seu mundo e a deixou perdida praticamente sem dinheiro.
Na tentativa de seguir a vida, mergulhou num romance volátil e em seguida numa crise emocional, a qual a deixou à beira do suicídio. Com a crise, veio a percepção da necessidade de recuperar a existência através daquilo que ela mais conhecia de perto com a sua profissão: viajar pelo mundo.
Não conhecemos o livro: "Comer Rezar Amar", editado aqui em 2008 pela editora Objetiva, mas vasculhamos a autora percorrendo os seus textos em seu blog e as entrevistas concedidas, nas quais sintetiza os acontecimentos vividos quando chegava aos 34 anos e como efetivou a busca e a recuperação do sentido e do prazer da existência.
Como livro é livro e filme é filme, o caminho será o do filme. E a primeira questão que fica patente na película de Ryan Murphy é que a busca da personagem é pela recuperação da espiritualidade perdida. Entenda-se, aqui, como espiritualidade, a dimensão de estar bem e em paz consigo, de expressar a liberdade da ação e estar aberta para vida, entendendo a essência, a aspiração de que viver não é apenas "algo físico". A meditação e/ou as preces buscam a espiritualidade.
No caso de Elizabeth, a espiritualidade progressivamente perdida ao longo de 34 anos, durante os quais se dedicou às questões pessoais e profissionais. Com a crise, percebe a necessidade de recuperá-la. E ela vai buscá-la através da meditação e da leitura nos templos espirituais da Índia e da Indonésia.
Entre as tantas e tantas críticas e resenhas lidas sobre o filme, nenhuma fala em espiritualidade. Uns colocam como autoajuda, como se isso existisse - autoajuda é apenas uma marca para formar um gênero e vender livros repletos de bobagens, como se houvesse a necessidade deles. Outros colocam "em busca de si mesma", como se houvesse uma cópia vagando por aí. "Identidade", "autoestima" foram outros termos usados.
O curioso no relato de Elizabeth sobre a sua jornada de redescoberta da vida reside em dois aspectos: o aprender a apreciar as coisas básicas da vida e o processo de recuperação da espiritualidade. As passagens dela por três países, Itália, Índia e Indonésia (Bali) servem como escalas de um processo de construção - ou reconstrução - da existência. Em cada um deles, aprendizado e descobertas.
Na Itália, aprende a curtir o prazer terreno - a comida, a bebida, a companhia dos amigos -, mas especialmente o "ficar sozinha", onde observa o próprio corpo e suas marcas, aprende a ser dona de si mesma, fazer as suas escolhas e tomar decisões (a escolha das roupas expressa isso muito bem).
Na Índia, o aprendizado espiritual surge com suas grandes dificuldades - adaptar-se às exigências, obter a paciência e a disciplina etc. Outro foco, também, passa a ser o entendimento da dor alheia (o drama do solitário Richard), dos anseios (a jovem adolescente Tulsi, obrigada a um casamento arranjado, o qual lhe extrai o sonho de frequentar uma universidade) e das diferenças entre povos e sociedades, com suas tradições e tabus.
No derradeiro terreno do aprendizado, em Bali, o aguardado reencontro com a espiritualidade, a qual lhe concede o equilíbrio para uma existência em paz. O aprendizado continua, mas agora no processo de partilhar e retribuir, uma forma de repassar aos outros a sua felicidade. Por fim, a chegada do amor a que todos têm direito.

 
Desigualdade
No entanto, "Comer Rezar Amar" é um filme com sérios problemas. A narrativa desigual desequilibra a produção em todo o seu andamento. As cenas desenvolvidas nos EUA carecem de maior dramaticidade, em parte porque ela se manifesta no íntimo da personagem. Quanto a isso, Júlia transmite o "vazio da alma" de sua personagem.
Na Itália, a narrativa se torna longa e arrastada, mas há um desfecho memorável na Ceia de Ação de Graças da família italiana, a qual expressa a comemoração da fraternidade. O corte brusco que leva a narrativa para a Índia é o único efeito da montagem cinematográfica relevante em todo o filme.
As primeiras imagens na Índia ressaltam a miséria e a orfandade em contraste com um país conhecido por suas quatro grandes religiões (Hinduísmo, Budismo, Jainismo e Sikhismo) e o posto de uma das 10 maiores economias do mundo. Lentamente a narrativa ingressa na dramaticidade ao expor o ainda existente sistema de castas, proibido pela constituição do país, mas mantido pelo hinduísmo entre seus muros.
No entanto, a dramaticidade buscada pelo filme é salva pela atuação memorável de Richard Jenkins como o angustiado "Richard do Texas". Ali, no diálogo em que Richard revela a dor que é a sua existência, reside o grande momento dramático de "Comer Rezar Amar". Na síntese, o aprendizado de um homem em conviver com seus próprios erros e entendê-los, legando a dor da culpa ao passado.
Em Bali, o filme novamente tem suas oscilações. O reencontro da espiritualidade, expresso na metáfora da "troca de conhecimentos" entre a estadunidense e o curandeiro e xamã balinês Ketut Liyer, é o ponto alto.
Essa bela metáfora se dá quando o xamã lhe entrega os livros milenares, ela copia e os devolve numa brochura moderna; e, na retribuição, ela o ensina a melhorar o inglês. A decepção se expõe quando o filme assume o seu gênero romântico.

 
Falso brasileiro
Os italianos reclamaram barbaridade da exposição que o filme faz da Itália: um país de homens mal educados (apalpam as mulheres nas ruas, como mostrado numa cena), mães dominadoras, gente que "fala gesticulando" e apreciador do "dolce far niente" - o doce fazer nada. A crítica de lá "arrasou" o filme.
Do lado de cá não é diferente. Há também o que reclamar da presença de Javier Bardem interpretando o gaúcho José Lauro Nunes, hoje com 58 anos (17 mais velho do que ela), que no filme se chama Felipe.
Não se nega o talento do ator espanhol, mas o personagem soa falso com seu assumido "portunhol". Então quando ele fala "falsa magra", a língua portuguesa estremece, os ouvidos doem. A latinidade sofre nas produções de Hollywood.
O que se estranha no filme é o fato de a produção ter escolhido, para todo o seu elenco, atores natos dos próprios países para interpretar seus personagens. A exceção é o brasileiro.

Moralismo
Há, ainda, outro detalhe: o moralismo com que o enredo trata a sexualidade. Lençóis sobre os corpos e portas se fechando fazem lembrar o cinema de Hollywood dos anos 30 sob as regras do Código Hays.
Ao que consta, a estadunidense e o brasileiro passaram 12 dias trancados numa experiência real do "conhecimento de corpos", regado a uma das grandes frases de Santo Agostinho: "àquele que ama tudo é permitido". O enredo prefere mostrar isso com Liz com uma infecção urinária, que a médica explica ser causada por "excesso de sexo".
É na concretização do romance entre duas pessoas marcadas por "divórcios cruéis" que o filme tenta recuperar a dramaticidade. No caso, a resistência à convivência.
No entanto, valem as palavras do xamã para Liz, de que a sexualidade não reside no corpo, mas na alma. Não se trata de terem encontrado a "alma gêmea" - outra bobagem - no outro, mas do amor que provoca desequilíbrio para ajustar o equilíbrio dos corpos, como o balinês explica. Nada mais filosófico e espiritual.
Em todo caso, "Comer Rezar Amar", mesmo com suas desigualdades, é um espetáculo apreciável, no qual Julia Roberts se destaca pela garra com a qual defende sua personagem. Não há problema nenhum em ser um filme mais afeito às mulheres e cuja narrativa lenta provoque tédio na plateia masculina.
"Comer Rezar Amar" tem o seu valor por trafegar na espiritualidade e tratar de uma experiência humana real pela busca do sentido da existência. Pode não fazer pensar, mas tem o seu encantamento.
MAIS INFORMAÇÕES
Comer Rezar Amar (Eat Prey Love, EUA, 2010), de Ryan Murphy, com Julia Roberts, Richard Jenkins, Christine Hakim e Javier Bardem. Cinemas e horários no Caderno Zoeira. 133 minutos. 12 anos.




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