Religião em tempos de transformação global - Por Renê Müller

Jacques Leenhardt mostra surpresa, e mesmo preocupação, com o debate que conduz a disputa eleitoral da Presidência da República Federativa do Brasil. Sim, o professor não é brasileiro, é francês – embora o domínio perfeito da língua portuguesa possa confundir um interlocutor.


Esteve em Florianópolis esta semana para falar justamente sobre religiosidade na América Latina. Tema que abarca a sempre quente discussão entre os favoráveis e os contrários à prática do aborto. Filósofo, doutor em Sociologia e diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, Leenhardt é, também ,um prestigiado crítico de artes. Fez a palestra de encerramento do 3o Encontro do Grupo de Trabalho Nacional de História das Religiões e Religiosidades, realizado entre quarta-feira e ontem na UFSC, em Florianópolis.

– Fiquei espantado. Na França, temos uma separação entre os assuntos religiosos e o Estado, o poder político. Há mais de um século há essa separação. E a própria Igreja tem papel ativo nesse acordo que separou as duas esferas – lembra Leenhardt.

Bom, no Brasil, teoricamente, é assim que deveria funcionar. País ainda católico em sua maioria sofre, porém, com uma politização das religiões. Ou melhor, com a utilização da política para objetivos próprios, difusos, de cada uma das igrejas que dividem grande parte dos fiéis brasileiros. O fiel virou também um eleitor – e a capacidade de influenciar seu voto tornou-se, de modo um pouco obscuro, moeda de troca entre religiosos e candidatos.

Vê-se, então, dois candidatos que, com certeza, têm clareza na diferença entre o Estado e a crença religiosa, mas abraçam um assunto caro aos mais devotados brasileiros, como o aborto. Que deveria ser olhado de outra maneira. De início, dentro de uma política de saúde pública.

Não é por passar pela crença e pela questão ética que a discussão é polêmica. Muitos dos assuntos que devem entrar na campanha para o cargo administrativo mais importante de uma nação estão longe de consenso, provocam o debate acalorado. Um deles, que precisa receber atenção integral e urgente, é a ecologia. Leenhardt tem trabalhado muito na questão ecológica nos últimos anos, inclusive com exposições do assunto.

– Esse tema é importante, merece não apenas figurar, mas ser uma das bases de um projeto político-eleitoral. Trata-se de política pública que tem implicações para todos, independente do cidadão ter crença religiosa ou não ter – ressalta.

Claro, a invasão da religião na política, ou da política na religião, não é nova. As divindades pautavam muito da ética e do comportamento da Antiguidade. Na Idade Média, a Igreja Católica ditava o cotidiano dos fiéis até nas mais banais situações. A influência pouco a pouco começou a diminuir, por conta dos avanços no campo humanístico, social, acadêmico e industrial. Já no início do século passado, só em determinadas situações um pecado significava crime.

A Igreja sempre foi alicerce importante para manifestações sociais de grande alcance. A resistência ao regime militar contou com o apoio explícito e oficial do ex-cardeal de São Paulo Paulo Evaristo Arns. Jacques lembra o papel importante da igreja nos países do Leste Europeu, especialmente a partir do início dos anos 1980. É o caso do sindicato Solidariedade, na Polônia.

Há uma grande, definitiva tradição católica e cristã na América Latina, mas que não pode ser considerada hegemônica. A religião não é apenas praticada na igreja ou no templo. Ela pode ser uma prática particular, individual.

– A mundialização, a globalização, nos colocam em um momento de crise. Não é mais o Ocidente que domina. Isso influi no nosso questionamento. Sempre se constrói um discurso, que nem sempre é teológico, mas se utiliza dos rituais e da crença. É o modo como a humanidade está construindo sua maneira de transcender. Afinal, religião não é apenas religar, mas também reler a tradição – discorre o filósofo.

Uma das maneiras de expressar e exercitar a crença é a representação artística. Não é por acaso que, quando o catolicismo ditava os rumos do Ocidente, tinha como uma de suas maneiras de expansão e dominação a arte.


– A arte também é uma forma de entrar na questão da representação do mundo. É mais um espaço de reflexão da crença e do mito. A arte tenta complexificar, interrogar o aspecto óbvio do que não é tão óbvio, recuperar a complexidade das imagens no tempo da tevê, do cinema – conclui Leenhardt.


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