A unidade humana - Por Pedro Martins Freire

Em "Além da Vida", de Clint Eastwood, a solidão, os dilemas da realidade e o impacto da morte impulsionam uma busca filosófica pelos significados da existência do homem, os quais encontram suas razões na espiritualidade que congrega todas as vidas numa só unidade

 
Em "2001: uma Odisséia no Espaço" (1968), Stanley Kubrick expressa, através da presença de um monólito negro em dois momentos da história humana, que a existência e a evolução são garantidas por algo divino. Nesse contexto kubrickiano, o homem tem uma jornada em seus estágios de vida, renascendo sempre para uma nova existência, na qual traz consigo a evolução e a sabedoria para a continuidade de uma civilização.

 
Em "Além da Vida", Clint Eastwood, com base no roteiro do inglês Peter Morgan (de "A Rainha"), trata da mesma temática da manifestação divina no homem, mas agora dentro de um estudo sobre a morte, a qual serve como motivo de busca para o entendimento e o significado da existência. Um tsunami e uma experiência de quase morte, um acidente e um irmão repentinamente órfão, um médium resistente em aceitar o seu dom, salientam-se numa história na qual as perguntas ganham caráter filosófico e as questões só encontram respostas na espiritualidade.

 
Fim do acaso

 
Eastwood, assim como Kubrick, elimina o caráter de acaso na existência do homem. O roteiro de Morgan entrelaça três histórias e personagens de sociedades diferentes (estadunidense, francesa e inglesa) cujas trajetórias acabam unindo-se em suas buscas por respostas. Elas se desfecham no caráter de unicidade, ou seja, na concepção de que todas as pessoas estão conectadas entre si e conforme a natureza das coisas, de ordem divina. Com isso, o ser humano continua existindo mesmo após a morte, com a comunicação entre as duas dimensões sendo estabelecida através dos médiuns.

 
Nas duas pontas do enredo, a inexistência do acaso e a comunicação entre mundos através dos médiuns fica patente. É o caso do encontro entre Melanie (Bryce Dallas Howard), a mulher que chega a San Francisco para recomeçar a vida e conhece George Lonegan (Matt Damon) em um curso de culinária.

 
Ela não está ali pelo acaso, mas porque o espírito de seu pai, que dela abusou sexualmente, precisa de seu perdão para sair do sofrimento no qual se encontra - e só um médium pode estabelecer essa comunicação. George é esse médium. O perdão surge como o instrumento divino que engrandece a unicidade e oferece uma nova oportunidade ao espírito.

 
Reforçando o tema, o tsunami que devasta a cidade praiana na Indonésia e faz a jornalista francesa Marie Lelay passar por "experiência de quase morte" surge para provocar-lhe o despertar para a realidade da vida, a essencial separação do mundo materialista de fama, dinheiro e do amante Didier (Thierry Neuvic), um sujeito tanto pragmático quanto canalha. Assim, seu destino não é escrever sobre políticos desonestos, mas sobre a espiritualidade da existência.

 
No processo de mudança de Marie, Morgan expõe tanto a opressão do paradigma reducionista e materialista que governa o mundo e reduz à incerteza e à chacota a existência de um mundo espiritual quanto o trabalho sério levado a cabo por cientistas que ousam enfrentar os tabus da ciência e de pesquisadores em busca de desvendar e tornar público os mistérios da vida após a morte.

Charlatães

 
Morgan expõe, ainda, a exploração do mundo espiritual, em nome do dinheiro, por impostores, oportunistas e charlatões. Essa exposição se dá através de Billy (Jay Mohr), o irmão de George, e da jornada do garoto Marcus (George MacLaren), o qual lida com a inconformidade frente a morte do irmão, numa dependência de sofrimento e solidão - as quais são a tônica do filme e de seus personagens.

 
Solidão, sofrimento, jornadas pessoais, buscas por respostas. George, o homem da conexão entre as dimensões da vida e da morte enfrenta seus dilemas. Não é por acaso que ele vai a Londres. Vai ao encontro do refúgio no anonimato e das definições da sua existência. A conectividade o leva à casa do escritor vitoriano Charles Dickens (1820 - 1870, autor de romances como "Oliver Twist" e "Grandes Esperanças") e posteriormente à feira literária onde todos os personagens encontrarão às suas respostas.

Conectividade

 
A conectividade na unicidade salienta-se de forma primorosa nos acontecimentos que levam o filme ao seu desfecho. George, ao toque da mão de Marie e ao ceder aos pedidos de Marcus, não apenas reafirma a conectividade entre os semelhantes, mas abre a sua consciência para o valor do dom que traz em si, de antever o seu futuro, o encontro com a pessoa a qual compartilhará, na tranquilidade do amor, as suas mútuas missões na existência.

 
A conectividade na unicidade encontra-se expressada em diversas culturas e religiões, mas salienta-se na filosofia indiana do Buddhi, a consciência da identificação de todos os seres como parte de si mesmo; nas diversas obras (entre elas "A Vida Espiritual", "Os Ideais da Teosofia" e "Morte... e Depois?") da teosófica e ativista dos direitos da mulher Annie Besant (1847-1933); no espiritismo na unicidade de Deus e de suas criações, dentre outros credos.

 
Certamente Eastwood, que afirma "não saber o que acontece no lado de lá", mas que "do lado de cá tudo acaba", e Peter Morgan, que escreveu a história em busca de uma resposta sobre a impactante morte de um amigo, não esperavam que "Além da Vida" fosse além de uma simples abordagem sobre as consequências da morte entre vivos e mortos.

 
Obra poderosa, aberta a diversas interpretações e abordagens, "Além da Vida" tem a humildade de não fechar as questões em si, mas de abri-las à percepção humana, sendo, na verdade, um filme sobre a vida em duas dimensões. Mais uma grande criação do mais importante cineasta da atualidade.

 
Tsunami

 
Uma das sequências mais impressionantes de "Além da Vida" é a do devastador tsunami, recriado em um beco da cidade de Lahaine, ilha havaiana de Mauí. A câmera, mantida numa prancha, mergulhava e filmava a atriz Bryce Dallas Howard sendo levada pelas águas. O próprio Clint Eastwood mergulhou, junto com a equipe.

 
As filmagens da sequência foram concluídas num gigantesco tanque de água montado nos estúdios Pinewood, em Londres, no qual a atriz simulou novamente, contando com uma série de canhões de água e redemoinhos, a sensação de estar sendo arrastada por um tsunami. Foi o primeiro trabalho direto de Eastwood com os efeitos especiais do equipamento CGI.

MAIS INFORMAÇÕES
Além da Vida (Hereafter, EUA, 2010), de Clint Eastwood. Com Matt Damon, Cècile de France, George e Frankie MacLaren e Jay Mohr. 
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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