Cantos da religação - Por Dellano Rios


Organizado pelo antropólogo Ismael Pordeus Jr., livro apresenta a história, os mitos, poesia da Jurema

Engana-se quem fala da tradição como algo do passado, que sobrevive hoje. A tradição está sempre em movimento, em permanente transformação, reconfigurando-se a partir de sua interação com os contextos sociais da qual faz parte.

Mesmo a religião, com suas regras, cânones e ritos, se redesenha. Esta é, aliás, a prova de que está viva. É nesta perspectiva que devem ser lidos os trabalhos do antropólogo Ismael Pordeus Jr.. Estudioso das religiões, Ismael Pordeus se dedica, atualmente, a pesquisas em torno da presença de credos como a umbanda, o candomblé e a jurema na península Ibérica.

Como todo viajante, as religiões também são transformadas por este movimento, por esta travessia transatlântica. As marcas desta recriação podem ser vistas, por exemplo, no livro "Jurema Sagrada: Do Nordeste Brasileiro à Península Ibérica". 

Escrito pelo juremeiro Arnaldo Beltrão Burgos, o Obá Tòwgún, o livro foi organizado pelo antropólogo, que lhe assina um elucidativo texto de apresentação. A jurema é uma devoção de forte ascendência indígenas, de raiz nordestina, como aproximações dos credos da Umbanda e do Candomblé.

Os estudos sobre a jurema no Brasil são relativamente numerosos. Contudo, o livro da parceria Pordeus/Burgos registra outra manifestação da mesma religião. É a jurema de matriz lusoafrobrasileira - definição esta que cabe a uma série de crenças que, nas últimas décadas, tem se movimentado pelos continentes africano, americano e europeu. Outro diferencial do livro é a presença dos escritos do próprio religioso.

"O culto da Jurema tem sido objeto de uma abordagem acadêmica no Brasil, não ocorrendo o mesmo em Portugal. Nesse sentido, penso ser importante me colocar como organizador desse trabalho escrito pelo Pai-de-Santo e Juremeiro, Arnaldo Burgos, sobre essa religião de matriz do Nordeste brasileiro, condutor das tradições indígenas na cultura tradicional, e de suas práticas religiosas", escreve Ismael Pordeus na introdução do trabalho.

Organicidade

O antropólogo tomou os escritos de Burgos e os organizou como um manual teológico, no qual constam informações a respeito da história do culto, bem como referências a mitos e ritos, passando por uma antologia de pontos, entoados nos rituais da Jurema Sagrada.

Ismael chama esses escritos de "literatura orgânica", numa referência ao conceito de "intelectual orgânico" (de Gramsci). É o próprio grupo social, no caso dos devotos da Jurema, quem engendra seu próprio porta-voz.

Nas entrelinhas, o livro salienta que as religiões tradicionais do cruzamento lusoafrobrasileiro também compõem suas próprias teologias. Se o sacerdote é o responsável pela manutenção e pela transmissão do saber, ele não atua de forma mecânica. É, ao invés disso, um ator na dinâmica de transformação da cultura.

O livro contribui para a reunião de uma vasta de bibliografia, produzida por sacerdotes e praticantes de diversos credos, de caráter teológico, cujo acesso é restrito. Tais escritos, por vezes, são disponíveis apenas em cópias reprográfica do original ou em edições artesanais. 

Esta não é a primeira vez que o antropólogo Ismael Pordeus Jr. trabalha com textos de "autores orgânicos". Em "Uma casa Luso-Afro-Brasileira com certeza", ele reconstitui uma história da transcultu-ração da umbanda em Portugal a partir dos escritos autobiográficos de uma Mãe-de-Santo.

Continuidade

No livro "Jurema Sagrada", Ismael Pordeus Jr. se encontra num terreno que lhe é familiar. Há mais de quatro décadas, o antropólogo se dedica ao estudo de manifestações religiosas de matriz transcultural, partindo de elementos culturais africanos, americanos e europeus. 

Em sua obra, encontram-se diversos escritos, baseados em estudos de campo, que vão da Umbanda cearense ao Candomblé praticado no Além-Mar; passando pela Santeria cubana e pela peregrina Jurema.

O processo de transnaciona-lização destes credos, aliás, já rendeu uma série de ensaios e outros dois livros, além do próprio "Jurema Sagrada". "Uma casa Luso-Afro-Brasileira com certeza" (2000, Terceira Margem) e "Portugal em Transe - Trasnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performances" (2009, da editora lusa Imprensa de Ciências Sociais).

Lançamento

Como é próprio aos rituais das crenças lusoafrobrasileiros, o evento de lançamento de "Jurema Sagrada" tem algo de festivo. Além de falas do autor, Obá Tòwgún/Arnaldo Burgos, e do organizador, o antropólogo Ismael Pordeus Jr., o público será saldado pelo sacerdote Pai Marcelo de Xangô, numa louvação à jurema.
SAIBA MAIS

Trechos:

" 6. Vamos orar meus irmãos vamos orar
Que Jesus também orou
No Jardim das Oliveiras
Com seu Pai se comunicou

. . .

Nas matas ouvi um gemido
Eu vi a mata se abrir
E vi em uma pedra sentado
O caboclo Guarani

. . .

7. Uma estrela lá no céu brilhou
Na terra resplandeceu
Cadê os companheiros da seara
Que até agora ainda não apareceu

. . .

8. A mata virgem escureceu
Mas o luar clareou
Eu estava sentado na minha Jurema
Quando o caboclo aqui chegou
Mas ele é rei, ele é rei, ele é rei
Mas ele é, na Jurema ele é rei
(...)

11. Caboclo não tem caminho para caminhar
Ele caminha por cima das folhas
Por debaixo das folhas
Por qualquer lugar
Oke caboclo..."
Referência: Do capítulo "Pontos cantadospara caboclos", páginas 73, 74 e 74

LIVRO

Jurema Sagrada: do Nordeste brasileiro à península ibérica
Arnaldo Burgos/ Obá Tòwgún e Ismael Pordeus Jr. (organizador)
Edições Leo
2012


Mais informações:

Lançamento do livro "Jurema Sagrada", de Arnaldo Burgos e Ismael Pordeus Jr., hoje, às 18 horas, no Museu do Ceará (Rua São Paulo, 51 - Centro). Contatos: (85) 3101.2609 e 3101.2610


Fonte: http://diariodonordeste.globo.com

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