Cidade sagrada na montanha serve de refúgio contra conflito na Síria


Em um país obscurecido pelo conflito, onde vizinhos e famílias agora estão divididos por ódios sectários, Maloula, uma cidade de montanha renomada por suas qualidades espirituais curativas e por seu ar restaurador, é um oásis de tolerância.

Os moradores desta antiga cidade, um dos últimos lugares em que o aramaico ocidental, o idioma falado na era de Jesus Cristo, continua a ser usado, prometeram no começo do conflito sírio, 20 meses atrás, que não sucumbiriam ao sectarismo e nem se deixariam arrastar ao caos.

A determinação deles é ainda mais notável se levarmos em conta a localização da cidade, na rodovia que liga Homs, uma das cidades mais atingidas pela revolta, à capital síria, Damasco, cada vez mais conflagrada. Mas reflete uma história amarga.

Maloula, considerada patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, foi sitiada durante a grande revolta síria de 1925, quando drusos, cristãos e muçulmanos rebelados tentaram escapar dos colonizadores franceses. A amarga lembrança da insurreição persiste; muitos dos moradores mais velhos foram criados ouvindo histórias sobre mulheres e crianças que tiveram de se esconder nas cavernas das três montanhas que cercam a cidade para escapar das atrocidades.

Os cristãos são quase todos das igrejas católica grega e ortodoxa de Antioquia. Os muçulmanos são sunitas. Mas a maioria dos moradores rejeita se classificar pela adesão religiosa, e prefere dizer simplesmente que "sou de Maloula".

Mahmoud Diab, o imã sunita da cidade, disse que "no começo da guerra, me reuni com os principais líderes religiosos da comunidade: o bispo e a madre superiora do principal convento. Decidimos que mesmo que as montanhas que nos cercam explodissem em conflito, não iríamos à guerra".

Nascido e criado em Maloula, Diab, que é membro do Legislativo sírio, falou com a reportagem do "New York Times" no pátio de sua mesquita, à sombra de oliveiras e choupos e diante de um pôster desbotado do ditador sírio, Bashar Assad, a quem ele apoia.

"É uma guerra sectária, em política, simplesmente mais um nome", diz, dando de ombros. "Mas a realidade é que não existe guerra aqui em Maloula. Aqui, conhecemos uns aos outros".

HISTÓRIA

Diab disse que a tolerância é uma tradição desde Santa Tecla, filha de um príncipe pagão e uma das primeiras discípulas de São Paulo, de quem talvez tenha sido mulher. Tecla fugiu para as montanhas no século 1, para escapar dos soldados enviados por seu pai, que ameaçava executá-la por suas crenças religiosas.

Reza a lenda que, exausta e vendo seu caminho bloqueado pela encosta íngreme de uma montanha, Tecla caiu de joelhos e orou desesperadamente, e um caminho se abriu na rocha. Daí o nome da cidade, Maloula, que significa "entrada" em aramaico.

"Nas montanhas sempre houve povos diferentes, religiões diferentes. Mas decidimos firmemente que Maloula não seria destruída", disse Diab.

No antigo templo de Santa Tecla, freiras cristãs que são partidárias leais do governo de Assad, vivem em silencioso isolamento, dedicadas a servir a Deus e ao país. Dormem em pequenas câmaras imaculadamente limpas e passam seu tempo trabalhando, rezando e cuidando dos doentes.

O convento é silencioso exceto pelo canto dos pássaros e pelo som das freiras subindo e descendo as escadarias de mármore, carregando grandes vasilhames de geleia de damasco, que elas fazem e vendem.

O convento é um dos 40 lugares sagrados de Maloula, onde antes da guerra cristãos e muçulmanos oravam pela cura da infertilidade e outros problemas, e bebiam água de uma rachadura na rocha supostamente cindida pelas preces da santa.

As freiras se levantam ao raiar do dia e passam seu tempo em oração, contemplação e atendimento aos enfermos. Também operam um pequeno orfanato. Mas a religião é vista como irrelevante, diz a madre Pelágia, católica grega que vive no convento há 30 anos.
"Tínhamos um muçulmano do Iraque que chegou ferido para se curar aqui", diz.

REFUGIADOS

Maloula no passado era um lugar de convalescença receitado por médicos aos seus pacientes, tamanha a pureza do ar. Agora, há pessoas fugindo dos combates em Homs, Damasco e Alepo que buscam refúgio junto a parentes no exterior ou em outras regiões da Síria menos afetadas pela guerra, e algumas delas estão vindo a Maloula.

"É minha terra", diz Antonella, uma norte-americana de origem síria que deixou Los Angeles e Miami três anos atrás para abrir um café no país em que nasceu.

Ela teve oportunidade de partir quando a guerra começou e havia combates perto de Maloula, mas não quis. "Quero ficar", afirma.

"Quando voltei, havia 50 ônibus de turismo ao dia", ela diz, em tom melancólico, contemplando seu café vazio, no qual ela serve comida ao estilo norte-americano.

No começo do ano, quando houve combates em Yasbrun, do lado oposto da montanha, com vítimas fatais, ela percebeu que seu país estava em guerra. "Caí em depressão".

Mas, diz Antonella, "a verdade é que, mesmo que Maloula esteja calma, ninguém sabe como as coisas vão acabar", afirmando que no geral prefere Assad. "Os rebeldes destruíram nosso país".

Não só pela guerra, mas a economia. Devido às sanções e à interrupção do tráfego internacional, o custo da comida disparou. Os turistas estrangeiros não vêm mais à Síria. Pequenos negócios como o de Antonella estão morrendo.

"É o começo da Terceira Guerra Mundial", previu seu irmão Adnan, que também voltou à Síria vindo dos Estados Unidos. "Está começando na Síria mas engolfará a região. É uma guerra de prepostos".

Esse é um refrão muito ouvido na Síria, o de que o país está sendo usado por sua importância geopolítica; muitas pessoas entrevistadas em Maloula e em pequenas aldeias cristãos e alauítas próximas acreditam que a guerra se espalhará para além do país.

CONFLITO SECTÁRIO

E resta uma pergunta muda: será que uma cidade renomada pela tolerância resistirá à pressão centrífuga de uma cruel guerra sectária?

"Todo mundo é cristão e todo mundo é muçulmano", disse o imã Diab, que se recusou a definir que porcentagem dos moradores de Maloula são muçulmanos. "A situação não vai se deteriorar aqui. Pelo contrário. As pessoas se apoiam".

Embora Diab relute em tomar partido, ao contrário da madre Pelágia, que diz "amar" Assad, ele afirma que "defendo a lei. Quero que o país seja governado legalmente".

"Se nos tornarmos salafistas", ele diz, em referência a uma corrente fundamentalista do islamismo que conquistou proeminência durante a Primavera Árabe, "perderemos essa mistura étnica, o que seria trágico. Todos precisariam ser como eles. Não haveria espaço para ninguém mais".

Embora Maloula fique a apenas uma hora de Damasco, continua intocada. Mas ao descer a montanha de carro, de volta à estrada de Homs, e ao entrarmos na capital, a realidade ressurge. A reportagem foi parada em mais de uma dúzia de postos de controle, nos quais soldados de expressão taciturna verificam documentos e o porta-malas do carro, buscando rebeldes e armas. Nuvens de fumaça cinzenta e um cheiro ácido percorrem o ar, resultado do último carro-bomba a explodir na capital.

Fonte: Folha.Com | New York Times e http://www.circuitomt.com.br

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura