Santos com status de deuses – Por José Lisboa Moreira de Oliveira


No dia 1º de novembro a Igreja Católica Romana celebrou a solenidade de todos os santos e de todas as santas. 

No Brasil a solenidade sempre é transferida para o primeiro domingo de novembro. Temos, pois, um momento propício para refletirmos sobre o assunto.

A Arqueologia conseguiu comprovar que há pelo menos 150 mil anos atrás os nossos ancestrais já praticavam alguma forma de religiosidade. Hoje temos registros arqueológicos que garantem a veracidade desta afirmação. Tais registros datam do Paleolítico Superior, com o homem de Neandertal, que enterrava seus mortos com oferendas, demonstrando assim uma crença em algo sobrenatural.

De um modo geral pode-se afirmar também que o surgimento da religião esteve ligado ao politeísmo. As religiões monoteístas são recentíssimas, embora no passado alguns estudiosos, como o padre austríaco Wilhelm Schmidt, tentassem provar o contrário. 

E os estudos mostram que, mesmo quando o monoteísmo se impôs em determinadas regiões, a tendência a adorar vários deuses continuou presente nestes locais. É o caso, por exemplo, do monoteísmo hebraico. 

Pesquisas recentes, referendadas por descobertas arqueológicas, revelaram que o javismo não se impôs de maneira absoluta, mesmo quando os outros cultos foram banidos por meios legais. Embora o culto oficial fosse monolátrico, o povo continuou cultuando outras divindades.

O surgimento do cristianismo se deu no âmbito do império romano, onde o politeísmo estava fortemente disseminado, também por uma estratégia política de Roma, que evitava destruir por completo a religiosidade dos povos subjugados. 

Quando em 380, por decreto do imperador Teodósio, o cristianismo se tornou religião de Estado, o politeísmo continuou presente. É verdade que neste período as conversões em massas aconteceram, pois as pessoas temiam represálias e recebiam vantagens, mas isso não foi suficiente para abolir por completo as práticas politeístas.

Em muitos casos o próprio cristianismo fez uma adaptação dos cultos e práticas politeístas, sem aboli-las por completo. O que antes era pagão transformou-se, de repente, em atividade do cristianismo. Isso eu encontrei pessoalmente em várias regiões da Itália. Lembro-me muito bem que visitando algumas vezes a Sicília tive contato com o culto a São Calógero celebrado em vários lugares da ilha. 

Durante a festa do santo notei certos costumes ligados ao mundo da agricultura. Ao pesquisar a origem dessas práticas, descobri que o cristianismo havia substituído o culto ao deus grego Kronos (correspondente ao romano Saturno), existente na localidade, pelo culto a São Calógero.

Também no sul da Itália, especialmente na província de Lecce, encontrei devoções a alguns santos que são considerados patronos da virilidade. Por este motivo, no dia da festa, as mães costumam levar os filhos até a imagem do santo e nela tocar o pênis do menino para que o garotinho adquira virilidade. 

Algumas mães pagam promessa ao santo confeccionando pães em forma de pênis para distribuí-los às pessoas. Lembro-me bem de que quando estava por lá houve uma polêmica muito grande, pois um bispo de uma das dioceses da região quis proibir essas práticas, causando uma grande revolta da população. 

Ao estudar as origens de práticas tão exóticas descobri que elas estavam relacionadas aos cultos de fertilidade da Magna Grécia e do panteão romano. Ao chegar à região o cristianismo não conseguiu eliminar tais práticas, limitando-se a transferi-las para os seus santos.

O resultado de todo esse processo é que, na prática concreta, os santos adquiriram status de deuses. A eles as pessoas se dirigem como se fosse a divindades, fazendo pedidos e promessas. No inconsciente coletivo os santos e as santas não são apenas exemplos de testemunho da fé cristã (Hb 6,12), mas verdadeiros deuses aos quais são dirigidas preces, súplicas e agradecimentos. Isso faz com que a profissão de fé na Trindade e o culto trinitário fiquem em segundo plano, ou até mesmo totalmente esquecidos. 

Certamente alguém me dirá que isso não é verdade, pois o Catecismo da Igreja Católica não ensina tal coisa. Porém, não adianta protestar. No catolicismo popular de raiz milenar o Catecismo Romano não conta. Além disso, práticas atualmente em vigor dentro da própria Igreja Católica continuam alimentando e reforçando este inconsciente coletivo. Basta, por exemplo, visitar santuários dedicados a Nossa Senhora e a santos como Judas Tadeu, Rita de Cássia, Edwiges, Expedito e outros. O que é feito aqui só reforça o "panteão de deuses” católico.

Para completar, a mídia católica não faz por menos. O modo de apresentar os santos adota esta linha. Dias atrás assistia, por acaso, um programa católico apresentado por um ilustre "professor”. Falava do culto a Maria. Lá pelas tantas alguém manda uma mensagem dizendo que tinha dificuldade em aceitar o culto aos santos, pois não sendo eles onipresentes e oniscientes, não podiam escutar as preces dos fiéis. 

Foi então que o magnífico "professor” saiu com uma das mais violentas heresias, dentre as tantas que se pode escutar em seu programa: "Meu caro, é verdade que os santos não são onipresentes e oniscientes, mas Deus transmite a eles o recado dos fiéis. Deus funciona como uma espécie de central de informações, passando o pedido dos fiéis aos santos”.

Neste modelo de culto aos santos, proclamado ao vivo pelo ilustre "professor”, a Trindade Santa ficou reduzida a um "Call Center”. Não há como não afirmar que, na prática concreta, temos um verdadeiro panteão católico. 

O Deus Trindade ficou relegado a um segundo plano, pois as preces, súplicas, os pedidos e, às vezes, alguns agradecimentos são dirigidos diretamente aos santos. As pessoas não se dirigem a Deus Trindade, mas aos santos, os quais são vistos como verdadeiros deuses, capazes de realizar prodígios, milagres e portentos. E a mídia católica, salvo honrosas exceções, reforça ainda mais tal concepção.

Há como mudar isso? Claro que sim, mas a Igreja Católica teria que revolucionar a sua catequese e as suas práticas. Isso seria demorado, mas se poderia chegar a uma mudança de mentalidade, depois de alguns anos de catequese séria e profunda. 

A catequese deveria começar explicitando que os santos não são deuses, aos quais dirigir pedidos. Eles são pessoas normais como nós, que levaram a sério o seguimento de Jesus. Eles devem apenas servir de exemplo para o seguimento de Jesus (Fl 3,17). É o que diz o Vaticano II: 

"Ao contemplarmos a vida daqueles que seguiram fielmente a Cristo, novo motivo nos impele a procurarmos a cidade futura (Hb 13,14; 11,10); ao mesmo tempo, aprendemos a descobrir, no estado e condição de cada um, qual é o caminho mais seguro para chegarmos, por entre as vicissitudes deste mundo, até à união perfeita com Cristo, quer dizer a santidade” (LG, 50).

Portanto, a função da veneração dos santos na Igreja é única e exclusivamente de exemplaridade: olhando como eles seguiram Jesus, procuramos fazer o mesmo hoje, dentro da nossa realidade (1Cor 4,16; 11,1). O que passa disso é abuso e desvio. Além disso, a Igreja deveria rever por completo a sua forma de canonizar santos e santas, avaliando apenas a autenticidade do seguimento (1Ts 1,6), abolindo a pretensão de que o santo faça pelo menos dois milagres. 

Isso só reforça a concepção de que os santos são vistos como deuses. E não adianta protestar, afirmando que o Catecismo da Igreja Católica diz bem claro que quem faz o milagre é Deus, pela intercessão do santo, pois isso o povo não entende. Para o povo o milagre é do santo e basta. E a Igreja Católica, com as suas práticas, os seus santuários e sua mídia, contribui para reforçar esta crença.

Temo, porém, que esta catequese não se faça na Igreja Católica Romana, pois isso iria mexer também com o econômico. Afinal de contas é o "panteão católico” que enche os cofres dos santuários, alimenta as fábricas de velas, objetos de cera, imagem de santos, as gráficas que produzem santinhos e as editoras que vendem milhões de cópias de novenas de santos. As fábricas, as gráficas e as editoras, por sua vez, patrocinam as despesas de muitos eclesiásticos, de santuários, de paróquias e da mídia católica. 

Se houvesse mudança, os padres, os bispos e as comunidades cristãs voltariam a ser pobres. A mídia católica não se sustentaria. E quando uma reforma toca o bolso dos eclesiásticos, isso causa um enorme rebu e ninguém tem coragem de mudar. Vale também para este caso a afirmação paulina: "A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6,10).

José Lisboa Moreira de Oliveira - Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.




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