Livro defende que colonização portuguesa favoreceu desenvolvimento do Brasil- Por Pedro Dubra


Em ensaio de prosa bem-humorada, diplomata aponta a valorização das raízes lusitanas no momento da emergência do Brasil no cenário internacional

No começo dos anos 2000, o escritor e diplomata português José Fernandes Fafe leu, na revista "Veja", duas entrevistas com os historiadores econômicos David Landes e Douglass North. Nelas, os laureados acadêmicos norte-americanos teciam loas à colonização inglesa dos Estados Unidos, de matriz protestante, e aproveitavam para botar lá embaixo a de portugueses e espanhóis, de base católica.

Nacionalista moderado, Fafe não chegou a se enfurecer diante das críticas, mas, por via das dúvidas, recortou e guardou as páginas das entrevistas. Anos depois, mais precisamente entre 2008 e 2010, ele resolveu se sentar para escrever a réplica, o ensaio: "A Colonização Portuguesa e a Emergência do Brasil" (Editora Babel, 189 págs., R$ 29,90), lançado em seu país dois anos atrás. Em novembro, a obra de prosa bem-humorada ganhou edição brasileira, com prefácio do ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso e posfácio do ex-primeiro-ministro e presidente português Mário Soares, amigo de faculdade do autor.

Tanto Landes quanto North partem de uma premissa emprestada do pensador alemão Max Weber (1864-1920): a austera ética calvinista, que valorizava o trabalho e supunha a existência de predestinação, foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo e o fortalecimento das instituições democráticas nos Estados Unidos. Os países de colonização ibérica teriam dado errado principalmente em virtude do catolicismo das suas metrópoles e de valores como a ostentação e a preguiça.

Bem antes dos acadêmicos norte-americanos e com maior sofisticação e mais vagar nas teorizações do que as sucintas respostas típicas das entrevistas, intelectuais brasileiros já haviam feito reflexões na mesma linha de herança maldita. Raymundo Faoro (1925-2003), por exemplo, também influenciado por Weber, tratou do patrimonialismo herdado do Estado português. Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), outro weberiano, problematizou a mistura entre público e privado na sociedade brasileira, enquanto o marxista Caio Prado Júnior (1907-1990) realçava o aspecto predatório da colonização, voltada para o atendimento das demandas do mercado externo.

Entre todos esses clássicos brasileiros, Gilberto Freyre (1900-1987) sempre sobressaiu como uma vistosa exceção. Para o sociólogo pernambucano, a colonização portuguesa teria sido até superior às demais, ao favorecer a miscigenação e, assim, equilibrar os antagonismos entre dominantes e dominados que o regime escravocrata acarretava. Talvez a tese controversa não tivesse juntado tantos opositores se se referisse apenas ao passado remoto da América lusitana; no entanto, essas ideias acabariam ajudando a justificar, em pleno século 20, o imperialismo lusitano na África, terminado apenas em 1975.

Estaria então Fafe, um social-democrata apoiador de cotas raciais que militou contra o salazarismo e fez carreira como embaixador fora do chamado circuito Elizabeth Arden (com a redemocratização portuguesa, atuou em Cabo Verde, no México, na Argentina e em Cuba, onde conviveu com Fidel Castro, de quem escreveu um perfil), comprando, acrítica e tardiamente, aos 85 anos de idade, o luso-tropicalismo freyriano? Como bom diplomata, ele responde com cautela.

Primeiro, diz-se um grande admirador do autor de "Casa-Grande & Senzala". “Ele é um autor muito complexo.” Depois, aponta as limitações de seu pensamento. “Toda colonização é ambígua. Ela traz a violência, que é a parteira da história, como dizia Engels. Por outro lado, os colonizados se formavam nas metrópoles e se rebelavam com as bandeiras do próprio Ocidente, como liberdade, nação e democracia, lucrando com o processo. Freyre se esqueceu da parte da violência e se deixou ser utilizado por Salazar.”

Para rebater Landes e North, José Fernandes Fafe ainda recorda que houve florescimento do racional espírito capitalista nas cidades de Gênova e Veneza nos séculos 13 e 14, antes da Reforma Protestante, portanto. E que o catolicismo não impediu o desenvolvimento da França, por exemplo. E que mesmo os jesuítas, presentes na colonização portuguesa a partir de 1549, tinham laivos de pragmatismo dignos dos puritanos que vieram fazer a América do Norte. Também lembra que a gloriosa história das Treze Colônias comportou escravidão, monocultura e aristocracia, como por aqui.

Em uma das passagens do livro, o diplomata cita o conceito de conciliação, tão caro a Gilberto Freyre, como um traço da política externa do Brasil, país que vem sendo encarado, nos foros multilaterais, como um articulador de consensos que investe no soft power para resolver controvérsias entre potências infinitamente mais poderosas do ponto de vista militar.

Para resumir a ideia: apesar dos pesares, talvez o Brasil esteja começando a ganhar respeito internacional – dando certo, por assim dizer – justamente em razão de uma característica daquela velha colonização tão desprezada. “Ninguém escolhe a família, a classe ou o colonizador. A colonização portuguesa foi a que tiveram. Aguentem-se”, brinca o velho embaixador.

Trecho

"Com uma imigração protestante, o Brasil seria diferente, sem dúvida. Mais moderno, com uma democracia mais enraizada e rodada, com um capitalismo mais desenvolvido... É aí que [David] Landes quer chegar. Com toda a lógica weberiana.

Depreende-se por vezes das palavras de Landes que o Brasil está impedido de se desenvolver pela matriz cultural que a colonização portuguesa, católica, lhe impôs, e que agiu, e age, na sociedade brasileira, fatal como um destino.

Ora o Brasil desenvolveu-se... Basta olhar e ver. Para que fique desmentida a tese de Landes.

Há desenvolvimento, com modernas atitudes comportamentais, modernos valores interiorizados... sem que tenham desaparecido completamente as atitudes e os valores da colonização portuguesa."



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