A Divina comédia recriada por Salvador Dalí chega ao Recife – Por Bruno Albertim

Homem que derreteu o tempo e plastificou o surrealismo nas artes, Salvador Dalí (1904-1989), mesmo consagrado, não se furtava a trabalhar sob encomenda. 

Nos anos 1950, aceitou a proposta do governo italiano para ilustrar Divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321). 

Com a grita geral e histericamente xenófoba pelo fato de um espanhol estar contando, com imagens, a obra prima de um dos pais da língua italiana, o governo suspendeu o contrato. Mas Dalí já estava suficientemente envolvido para brecar-se.

O resultado da persistência do pai do surrealismo pode ser conferido, a partir de hoje, no Recife. Depois de passar pelo Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba, a exposição:

Dalí, A divina comédia

entra em cartaz na Caixa Cultural, diante do Marco ZeroNa íntegra, como uma grande e densa narrativa, podem ser "lidas" as cem gravuras a partir das aquarelas pintadas pelo espanhol sobre os cantos do poema épico para marcar, na ocasião, os 700 anos de nascimento de Dante, em 1965.

A montagem segue a ordem labiríntica da obra literária original: Inferno, Purgatório e Paraíso, os estágios pelos quais passam o Poema Sagrado de Dante. As aquarelas tomam eles de assalto como ambientes.

Divina Comédia, a obra literária e monumento ocidental, é um dos marcos fronteiriços e salto entre os pensamentos medieval e renascentista. Começou a ser escrita em 1304 e foi concluída em 1321, ano da morte do autor.

O poema narrativo fala de uma viagem por três mundos (os tais Inferno, Purgatório e Paraíso), percorridos por personagens como o autobiográfico Dante (o homem), Beatriz (a fé) e Virgílio (a razão). A exposição acompanha a divisão. As gravuras fazem o público passear desde os círculos infernais, o centro da terra, onde encontra Lúcifer e, depois, regressa à superfície terrestre, onde sobe a montanha do Purgatório, para, na companhia da amada Beatriz, ser consagrado no Paraíso.

Nas obras, Dalí investe no seu método paranoico-crítico, um filtro para o tratamento da realidade não apenas pela ótica do racional, estabelecendo conexões entre objetos aparentemente não conciliáveis. 

"Dalí teve oportunidade, nesse conjunto, de revistar toda sua obra. Por exemplo, na parte dedicada ao Inferno, agente nota uma pegada mais surrealista", diz a cubana Ana Rodrigues, uma das curadoras da exposição.

No Inferno, percebe-se a presença dos temores e do subconsciente na construção das aquarelas. "Na primeira etapa surrealista de Dalí, as obsessões eram o foco da sua criação. No Paraíso, os trabalhos são mais equilibrados, mais harmoniosos, de uma espiritualidade que ele desenvolveu num momento mais tardio", diz ela.

No conjunto, Salvador Dalí ilustra sua própria carreira como artista. Não faltam referências a símbolos caros ao surrealista como as aranhas, as muletas, os relógios moles. No inferno, onde a paleta de cores é mais taciturna, o quadro Homens que se devoram mostra entidades como os famosos relógios moles humanizados se devorando. Ainda no Inferno, a obra Anjo caído traz o personagem refletido em gavetas saídas de seu ventre. Mesmo no Paraíso, Dalí não abandona seus demônios. Cores mais vivas trazem às cenas uma sexualidade complexa, freudiana.

O projeto, de orçamento não divulgado, é patrocinado pela Caixa via edital público, e promovido pela Arte A Produções, com apoio do Instituto Cervantes, e do Instituto Italiano de Cultura. 

"Essa é uma rara coleção completa das aquarelas. Com o tempo e valorização das peças, colecionadores foram se desfazendo delas", diz a curadora. A coleção em exposição no Recife pertence a um casal de colecionadores europeus. Os organizadores também não informa o valor do seguro para a viagem da coleção. A Divina Comédia de Dalí faz morada na cidade até 14 de julho.

SERVIÇO


Dalí: A Divina Comédia - até 14 de julho, de terça a domingo, das 12h às 20h. Na Caixa Cultural Recife - Av. Alfredo Lisboa, 505, no Marco Zero, Bairro do Recife. Fone: 3425-1900




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