Especialistas descartam incompatibilidade entre a religião muçulmana e a democracia – Por Rodrigo Craveiro


 Eles também condenam a imposição da fé. Especialistas culpam o ex-líder egípcio Mohamed Morsi por fracassar.


A Al-Ma’idah, sura 5, versículo 48 do Corão, defende a convivência pacífica entre a religião e o governo: "A cada um de vocês, nós prescrevemos uma lei e um método. Se Alá quisesse, teria feito de vocês uma nação (unida na religião), mas (Ele pretendia) testar vocês no que Ele lhes deu". 

O golpe militar no Egito representou a derrocada do presidente Mohamed Morsi, um líder que misturou o islã e a política, subvertendo sistemas e crenças seculares da sociedade. "A sura Al-Ma’idah é a base de um consenso de sobreposição de valores políticos e religiosos, a fim de torná-los compatíveis com a governança democrática de uma sociedade multirreligiosa e multissectária no mundo muçulmano", explicou ao Estado de Minas, por e-mail, o tanzaniano Abdulaziz Sachedina, professor de estudos islâmicos da George Mason University (em Fairfax, no Estado norte-americano de Virgínia). 

A convulsão nas ruas do Egito sinalizaria a fragilidade do islã político em um mundo árabe cada vez mais aberto ao Ocidente e coloca em questão o papel da democracia sob a tutela de Maomé. A Irmandade Muçulmana, facção à qual Morsi pertence, perdeu o poder e se viu caçada pelas Forças Armadas. 

Ontem, autoridades anunciaram e depois negaram que o ganhador do prêmio Nobel da Paz de 2005, Mohamed Elbaradei, havia sido nomeado primeiro-ministro interino (leia texto nesta página).

Segundo Sachedina, nos países islâmicos, a "democracia radical" (baseada na justiça) é mais natural do que a "democracia liberal" do Ocidente. "A razão é óbvia: a corrupção, nos âmbitos político e econômico, exige uma governança democrática capaz de manter as autoridades sensíveis ao povo", explica. 

"Este é o secularismo do islã, que nega ao Estado a legislação sobre os temas da relação entre Deus e os humanos", acrescenta. Autor de Islamic roots of democratic pluralism (Raízes islâmicas do pluralismo democrático, em tradução livre), o especialista cita a sura 2, versículo 256 do Corão, "Nenhuma compulsão nos assuntos de religião", para lembrar que um governo não pode impor a religião a uma população, pois esta deve ser livremente negociada entre Deus e a humanidade, por meio da fé. 

"A ausência de clérigos nas instâncias de poder possibilitou que as instituições religiosas se mantivessem livres da interferência do Estado", exemplificou Sachedina.

Para ele, a noção de "islã político" no Egito foi fundada sobre uma premissa errada, que supunha a dominação da religião islâmica por meio do controle da Irmandade Muçulmana. "Morsi deveria saber que o papel da religião é o de guiar, e não de governar", sustenta Sachedina. 

O debate entre islã e democracia já dura pelo menos dois séculos. De acordo com o libanês Nadim Shehadi, analista do Instituto Real de Assuntos Internacionais da Chattam House (em Londres), a polêmica teve início quando os otomanos começaram a implementar reformas para modernizar o império, com os objetivos de manter a diversidade e impedir o surgimento de movimentos separatistas e nacionalistas. 

"Nada no islã é incompatível com a democracia. O mesmo foi dito na América Latina, ao culparem as culturas católica e do machismo pelas ditaduras, e ao apontarem que a sociedade e a democracia eram discordantes", lembrou Shehadi, em entrevista por e-mail. Ele fez questão de ressaltar que alguns dos maiores países muçulmanos do mundo, como a Indonésia e a Índia, são democracias sólidas.

Especialista em islã pela Universidade de Colúmbia Britânica, sediada em Vancouver (Canadá), o franco-americano Farid Laroussi também não vê contradições entre o islã e a democracia. Na opinião dele, o islã está na vanguarda da imprensa mundial não por ser considerado um retrocesso ou conservador ao extremo, mas por oferecer uma visão diferente de mundo. 

"Enquanto isso, as ideologias do Ocidente entraram em colapso e a globalização liberal lentamente tem engolido as economias e as culturas", polemiza.

Colonialismo 

Fatores históricos ajudariam a decifrar essa dicotomia entre o islã político e a democracia. Para sobreviver à herança maldita da era colonial e a regimes autocráticos (como os de Muamar Kadafi, na Líbia; Bashar Al-Assad, na Síria; Hosni Mubarak, no Egito; e Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia) e alheias a uma dissidência política sufocada, muitas pessoas se voltaram para a religião como ferramenta cultural de resistência e para reivindicar uma identidade própria. 

"A questão não é se o islã e a democracia podem cohabitar, mas quando isso ocorrerá. Países como a Tunísia e o Egito são experimentos: eles precisam de tempo para aprender e para avaliar a governança da fé e das instituições livres", disse Laroussi. De acordo com ele, o secularismo poderia funcionar se mantivesse a fé separada do processo político, sem que fosse necessário renunciar a si mesmo.

"O problema é que, quase sempre, a elite na Tunísia e no Egito tende a idolatrar modelos seculares do Ocidente e a rejeitar sua própria cultura nativa, situação que recria o velho paradigma colonial do auto-ódio", conclui.

Laroussi lembra que o islã foi o primeiro a conceder os direitos às mulheres (casamento, divórcio e herança) e às minorias (judeus e cristãos), além de definir um sistema de justiça independente da classe social ou da etnia e de banir a usura na economia de mercado. "Muitos creem que a religião foi pervertida pelos sistemas políticos, pela corrupção e pela repressão do Estado. Ninguém pode impor o islã a alguém", alerta.

Vaivém no novo governo do país 

O cargo de premiê foi ontem motivo do primeiro grave desentendimento dentro do novo governo do Egito, formado após o golpe militar que, na quarta-feira, depôs o presidente Mohammed Mursi. 

O prêmio Nobel da Paz (2005) Mohamed ElBaradei, uma das vozes mais influentes da oposição egípcia, chegou a ser anunciado pela mídia oficial como futuro primeiro-ministro. No entanto, por volta da meia-noite do horário local (às 19h, no Brasil), a Presidência negou a nomeação. Um porta-voz do governo, em comunicado oficial, afirmou que, apesar de ElBaradei ser a "opção lógica", ele ainda não havia sido confirmado para o cargo. Haveria outras opções para ocupar o posto de primeiro-ministro, todas ainda levadas em consideração.

O anúncio foi recebido com confusão no país, uma vez que já tinha sido noticiada a iminência da posse de ElBaradei. Em seguida, surgiram relatos de que o nome do diplomata havia sido alvo de protesto do partido salafista Al-Nur, que teria ameaçado retirar seu apoio ao governo instaurado pelo golpe militar. ElBaradei, que ainda segue como a principal aposta para o cargo, é conhecido pela direção da Agência Internacional de Energia Atômica, ligada à ONU. Ele apoiou a deposição de Morsi.

A Irmandade Muçulmana, organização aliada ao presidente deposto, se recusava ontem a reconhecer ElBaradei como premiê ou qualquer outra decisão tomada pelo governo, que a organização considera ilegítimo.

Em mais um dia de intensos protestos, as Forças Armadas egípcias e o presidente interino, Adly Mansour, se reuniram no Cairo para debater a instabilidade que domina o Egito. Apesar de a Irmandade Muçulmana, que convocou novas mobilizações para hoje, afirmar que os protestos são pacíficos, moradores relataram ter visto seguidores do grupo islâmico portando armas e facas.

Na região Norte da Península do Sinai, um padre cristão copta foi morto por homens armados. A Irmandade Muçulmana criticou o papa copta Tawadros por ter dado sua bênção para a remoção do presidente. Outros casos de tiroteios supostamente executados por insurgentes islâmicos foram registrados na região.



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