Capital baiana teve devoção da Boa Morte

Durante cinco dias, a partir da próxima terça-feira, 13, a cidade de Cachoeira (a 110 km da capital) vai ser palco de uma das festas religiosas mais importantes da Bahia: a que celebra Nossa Senhora da Boa Morte. 

O que poucos sabem é que Salvador também abrigou um grupo direcionado à mesma devoção. 

Em Salvador, um grupo de mulheres reverenciava Nossa Senhora da Boa Morte por meio de uma associação chamada de devoção. As devoções eram associações com organização mais modesta que as irmandades.

Abrigada na Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios, que funcionava na Igreja da Barroquinha, a Devoção da Boa Morte soteropolitana realizava festas famosas pela beleza e fartura.

Além disso, teve em cargos diretivos duas grandes sacerdotisas do candomblé: Maria Júlia da Conceição Nazaré, fundadora do Terreiro do Gantois; e Eugênia Anna dos Santos, conhecida como Mãe Aninha, que fundou, em 1910, o Ilê Axé Opô Afonjá.

"O grupo da capital ficou mesmo como devoção. O de Cachoeira, mesmo sem oficializar-se como irmandade, organizou-se como tal",
diz o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Renato da Silveira, autor do livro: O Candomblé da Barroquinha. 

Para o historiador e mestre em estudos étnicos e africanos, Cacau Nascimento, as instituições tinham independência entre si, mas mantiveram uma rede de cooperação mútua.

"Não temos dados muito precisos sobre datas de formação, mas, possivelmente, havia laços de solidariedade entre os grupos de Salvador e de Cachoeira", acrescenta.

Saber os detalhes sobre a interrupção do funcionamento da Devoção da Boa Morte em Salvador é difícil. Os arquivos da Igreja da Barroquinha foram perdidos. Em 1983, após ser parcialmente destruída por um incêndio, ela foi abandonada.

O livro: Procissões Tradicionais da Bahia (1941), de João da Silva Campos, reforça o que ficou da tradição oral sobre a Devoção da Boa Morte em Salvador. O autor, que ainda conseguiu pesquisar os arquivos da igreja, afirma que a última procissão da Boa Morte na capital baiana foi em 1930.

Sobrevivência

Se a festa desapareceu em Salvador, continuou em Cachoeira. No contexto em que as irmandades perderam adeptos e força, a da Boa Morte resiste. Ao lado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Salvador, ela mantém a memória de como foram importantes estruturas do sistema colonial brasileiro.

As irmandades eram associações católicas com entrada permitida mesmo para quem não era padre ou freira. Ofereciam aos membros amparo em casos de invalidez e morte, além de assegurar os ritos fúnebres. As irmandades para negros ainda tinham um sistema de contribuição que permitia comprar a alforria.

A Irmandade da Boa Morte é ainda bem mais interessante, por reunir apenas mulheres. As integrantes ficaram conhecidas como "negras do partido alto", pois algumas chegaram a enriquecer com o trabalho, principalmente no comércio.

"Há controvérsias sobre a data precisa de surgimento da irmandade em Cachoeira, mas podemos estabelecer que ela ganhou visibilidade a partir de 1850, em um contexto abolicionista",
diz Nascimento. A filiação à Igreja Católica não impediu que essas associações fossem pontos de preservação das práticas religiosas que os variados grupos étnicos africanos trouxeram.

"A irmandade guarda, nos ritos e até na estrutura, elementos do candomblé e da Sociedade Gèlèdé", diz o historiador Cacau Nascimento.

Preservação

A Sociedade Gèlèdé surgiu no Reino de Ketu, nas últimas décadas do século XVIII. Era constituída, segundo Renato da Silveira, pela realização de festivais que incluíam máscaras, música e dança. Os ritos saudavam forças cósmicas e os poderes femininos ligados à fecundidade para atrair benefícios.

Embora os ritos mais próximos do candomblé na Festa da Boa Morte sejam cercados por sigilo até hoje, especialistas como Cacau Nascimento e Renato da Silveira reconhecem elementos das celebrações Gèlèdé nas poucas informações que há sobre eles.

Em Cachoeira, houve envolvimento direto com a criação de um terreiro de candomblé: o Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé, por volta de 1860.

"A irmandade, possivelmente, foi uma rede para alforriar do cativeiro as sacerdotisas que ajudaram neste processo religioso", diz Renato da Silveira. Não à toa, até hoje integrantes da Boa Morte ocupam altos postos na hierarquia dos terreiros sediados em Cachoeira.

Festa em Cachoeira (Bahia) 

Dia 13 - Às 18h30, cortejo com a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte sai da Capela da Ajuda para percorrer as ruas. Em seguida ocorre a missa pela alma das irmãs falecidas. Às 21h, as irmãs se reúnem com familiares e convidados para a Ceia Branca. O cardápio é à base de frutos do mar e sem azeite de dendê

Dia 14 - Missa simbólica para o corpo presente de Nossa Senhora, a partir das 19h, na Igreja Matriz. Às 20h, tem a procissão do enterro

Dia 15 - Festa de Nossa Senhora da Glória. Dia em que as irmãs comemoram a assunção de Maria. Começa com alvorada às 6h. Elas saem em cortejo até a Igreja Matriz, onde há missa às 10h, seguida de procissão. Depois, as irmãs dançam valsa. É servido almoço para todos os presentes. Em seguida, começa o samba de roda

Dia 16 - Samba de roda, às 20h, com distribuição de cozido
Dia 17 - Último da festa. Samba de roda, às 20h, com distribuição de caruru, mugunzá e pipoca

Fonte: http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br





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