O conflito sírio, para além da religião

Na mesquita central dos Omeyas, de Damasco, está a tumba de São João Batista, a poucos metros de onde, junto aos muros desse lugar sagrado do mundo muçulmano, jaz o sultão Saladino, vencedor contra os cruzados. 

Nos bairros da cidade, as igrejas se erigem ao lado das majoritárias mesquitas.


Históricos pontos de inflexão possibilitaram que um credo ou outro tenham predominado temporariamente, até que, depois do surgimento do Islã, a maior parte da região se inclinou para essa religião monoteísta.

Breves episódios históricos, como as Cruzadas, com suas pretensões de conquista da Terra Santa, e o não tão velado propósito de controlar as rotas comerciais entre Europa e o Oriente Longínquo, também deixaram sua marca em terras sírias.

E é que Síria, como mosaico cultural do Oriente Médio, também o foi durante boa parte de sua história quanto à religião, como resultado de milenares idas e vindas da multidão de deuses, acalentados pela mente dos homens.

A postura estatal laica impulsionada pelos governos de Hafez al-Assad e, até o presente por Bashar al-Assad, permitia a convivência harmoniosa de diferentes seitas islâmicas, principalmente a maioria sunita e a minoritária alauita, junto ao respeito a uma população cristã, que atinge quase 15 por cento dos sírios.

Nas sextas-feiras, enquanto os muçulmanos guardavam seu dia santificado, os cristãos continuavam sua atividade normal, ao passo que aos domingos invertia-se de maneira natural essa situação. E ainda, santuários de diversos credos eram frequentados tanto por nacionais como estrangeiros.

Ainda hoje, à entrada da mesquita dos Omeyas ninguém pergunta ao viajante por sua religião.

Chega a guerra 

Em meados de 2011 a realidade na Síria mudou, e para pior. Alguns setores da população pouco favorecidos pelas mudanças econômicas impulsionadas pelo governo durante os últimos anos iniciaram algumas manifestações de descontentamento na província de Deraa, no sul do país.

Com o estímulo calculado de nações como Arábia Saudita, Jordânia, Turquia e Catar, aquelas demonstrações que em seu início puderam ter tido legitimidade, rapidamente se tornaram instrumento e pretexto para a ingerência estrangeira.

E com a entrada em massa de mercenários de até 83 nações em território sírio, penetrou o mais radical dos pensamentos islâmicos, chamado salafista ou takfirista. Sua intolerância religiosa, própria da Idade Média, converteu numerosos setores da população síria em párias, do ponto de vista de sua interpretação extrema do Islã.

Nas zonas que temporariamente estão sob controle desses grupos, os cristãos e os alauitas (ramo do universo muçulmano), principalmente, têm sua vida pendente por um fio.

São muitos os casos relatados de assassinatos em massa, como ocorreu em agosto passado em várias aldeias alauitas da província de Latakia, onde extremistas islâmicos assassinaram 190 civis, levando como reféns mais de 200 mulheres e crianças, só pelo fato de serem muçulmanos que pensam diferente deles. Os santuários e monastérios cristãos, por outra parte, também são alvo da violência sectária.

Em Damasco várias igrejas foram alvo de projéteis de morteiro. No mais recente desses fatos, na cidade de Malaula, ícone cristão sírio e único lugar do mundo onde ainda se fala o aramaico (a língua de Jesus), o monastério de Santa Tecla foi destruído e suas freiras sequestradas. Enquanto isso, em outras regiões ao norte do país, numerosos templos e conventos cristãos agora são ruínas, enquanto alguns clérigos dessa confissão foram assassinados, outros sequestrados e o resto ameaçados do mesmo destino.

Na cidade de Jaramana, no sul de Damasco e com uma população majoritariamente cristã, os obuses de morteiro lançados pelos grupos armados caem com muito mais frequência que a chuva. Milhares de civis foram assassinados dessa maneira, entre eles mulheres e crianças. Esses crimes e desmandos dos takfiristas foram inclusive denunciados de dentro do Islã.

Assim, o ulemá Mohamed Tawfik Ramadã aç-Bouti, presidente da Federação de Ulemás Islâmicos no Oriente, clamou pelo "correto entendimento do Islã, que alguns tratam de distorcer, inclusive convertendo o mais significativo lema para os muçulmanos, "Allahu Akbar" (Deus é Grande), em símbolo de destruição e das piores formas de assassinato".

Causas reais 

Visto esse cenário, pareceria que a guerra, autoproclamada "santa" pelos jihadistas, tivesse como causa real a intolerância religiosa e as tentativas de impor na Síria um estado islâmico de corte wahabita (da Arábia Saudita).

Mas isso é só um subproduto de ambições mais mundanas, que constituem as verdadeiras causas do conflito: o domínio por parte das potências ocidentais e Israel dos recursos econômicos em toda a região, que se estende até o Golfo Pérsico, rico em combustíveis.

Conhecem-se os planos de Washington, secundados por uma aparente inação de Tel Aviv, para eliminar os governos de sete países "rebeldes" do Oriente Médio. Na lista apareciam Irã, Iraque, Síria e Líbia, algo reconhecido até pelo general Wesley Clark.

Nesse contexto, a Síria constituía um dos pontos chave. Durante décadas, Damasco enfrentou-se contra os planos israelenses de domínio regional, inclusive com armas em mais de uma guerra. Também deu refúgio a várias organizações palestinas da resistência.

De fato, o acampamento palestino de Yarmouk é realmente uma cidade na periferia sul de Damasco. A Síria também constituiu um importante apoio para o movimento patriótico Hezbollah, o qual se tornou particularmente incômodo a Tel Aviv depois de evidenciar uma surpreendente capacidade militar para derrotar, ao menos localmente, o exército israelense, como o demonstrou no sul libanês durante 2006.

A isso se soma a tradicional amizade, mais sólidos laços econômicos e militares primeiro, com a extinta União Soviética, e depois com a Rússia, que atualmente possui sua única base naval no Mediterrâneo no porto sírio de Tartous.

Mas, sobretudo, para o Ocidente, como definição político geográfica, a Síria se mostrava como um estorvo pelas crescentes relações econômicas com Teerã, facilitadas pela afinidade religiosa de seus governos.

Do ponto de vista geoestratégico, a Síria constituía o primeiro degrau para as tentativas de submissão do país persa, e para ali dirigiram-se os instrumentos de dominação global com o emprego do quanto se precisasse para que meio mundo pudesse ser manipulado com motivações religiosas.




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