O sonho de Martin Luther King - Por Celia Maria Marinho de Azevedo

Discurso proferido há 50 anos na Marcha de Washington tornou-se um marco na luta contra a segregação racista nos Estados Unidos. O evento é relembrado por historiadora na CH.

Há 50 anos um simples broche de propaganda, distribuído pelos organizadores da então planejada Marcha de Washington, causou profunda apreensão no governo e na mídia dos Estados Unidos. Nele se via um caloroso aperto de mãos, uma negra, outra branca, em clara manifestação de que norte-americanos descendentes de europeus e de africanos poderiam conviver amigavelmente em vez de continuar divididos pelos muros da segregação racista legalmente instituída.

O evento pretendia dar apoio a um projeto de lei de direitos civis que bania a discriminação em locais públicos, na educação e no emprego, encaminhado ao Congresso pelo próprio presidente John F. Kennedy. Mas o sonho de convivência integrada entre cidadãos negros e brancos projetava-se antes como pesadelo para o governo. 

O temor da presidência, então em mãos do Partido Democrata, era que a escalada da violência atingisse um ponto incontrolável, prejudicial para o futuro político de seus governantes e da tão aclamada democracia norte-americana em plena tensão da Guerra Fria contra o totalitarismo soviético.

O ano de 1963, que mal chegava à sua primeira metade, havia sido especialmente quente, com cerca de 900 manifestações antirracistas em mais de 100 cidades, mais de 20 mil prisões e ao menos 10 mortes. 

A princípio restritas aos estados sulistas, onde se implantara desde o final do século 19 um sistema formal de segregação racista nas escolas, nos transportes, nos hospitais, nos locais públicos em geral, as manifestações começavam a ganhar as cidades do norte, onde um racismo informal e encoberto agia nas mais diversas instituições e práticas sociais. Diante disso, Kennedy chegou a se reunir em junho com 30 líderes do movimento dos direitos civis para pedir o cancelamento da marcha, programada para daí a dois meses.

Desde 1954, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos julgara inconstitucional a segregação racista nas escolas, o movimento dos direitos civis lutava para assegurar o cumprimento da medida.

Mas Martin Luther King, Jr., ministro de uma igreja batista de Atlanta, Georgia, e doutor em teologia, então com 34 anos, já havia obtido reconhecimento entre bases e lideranças de que já não era mais possível esperar. 

Afinal, desde 1954, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos julgara inconstitucional a segregação racista nas escolas, o movimento dos direitos civis lutava para assegurar o cumprimento da medida, além de pressionar no sentido da desmontagem de todo o sistema segregacionista. Entre as muitas batalhas, destaca-se aquela voltada para a dessegregação dos ônibus de Montgomery, Alabama. 

O estopim foi a prisão da costureira e militante do movimento Rosa Parks, que se recusou a ceder seu assento a um homem branco no fundo do ônibus, reservado às pessoas negras.

O boicote aos ônibus teve início em dezembro de 1955. A população negra preferia andar quilômetros a pé, todos os dias, a sofrer as humilhações de um transporte segregado. No início de 1956, já reconhecido como líder do movimento, o reverendo King foi preso, acusado de conspirar contra a normalidade “sem causa justa ou legal”. Quase um ano depois, a Suprema Corte considerou inconstitucionais as leis segregacionistas do transporte coletivo do Alabama.

Outra luta importante foi o movimento de ocupação pacífica das lanchonetes reservadas aos brancos. Iniciado por estudantes negros em Greensboro, Carolina do Norte, em fevereiro de 1960, logo se alastrou para outras localidades. Em 1963, o movimento atingiu o auge em Birmingham, Alabama, em meio a episódios de violência policial contra manifestantes, seguidos de nova prisão de King e de inúmeros militantes.

As fotos que circularam na mídia nacional e internacional contribuíram para firmar uma imagem vergonhosa da democracia norte-americana: policiais com cassetetes instigavam cães contra manifestantes negros, enquanto a Ku Klux Klan lançava bombas nas casas de líderes do movimento e cometia outras atrocidades contra pessoas negras. 

Muitas imagens apontavam a participação ativa de sulistas brancos na repressão, até de mulheres raivosas a xingar crianças negras na chegada a uma escola integrada. Algumas fotos mostravam jovens brancos divertindo-se em jogar sal e açúcar sobre a cabeça de jovens negros sentados em uma lanchonete cujos assentos eram “só para brancos”.

Um mar de rostos

Não é difícil, portanto, imaginar por que o discurso de Martin Luther King, “Eu tenho um sonho”, proferido ao final da Marcha de Washington, em 28 de agosto de 1963, causou especial impacto nos cerca de 250 mil manifestantes e no público televisivo.

Do alto do Memorial de Lincoln, no ano do centenário da Proclamação de Emancipação dos escravos, assinada por aquele presidente em meio à Guerra Civil (1861-1865), King revelou o sonho que se projetava por trás do longo e sofrido percurso da luta pelos direitos civis. 

Nada mais que a concretização das aspirações históricas mais profundas da democracia norte-americana e de sua Declaração de Independência (4 de julho de 1776): o reconhecimento de que todos são iguais, com direito inalienável à liberdade e a uma justiça igualitária.

Inspirado por uma luta antirracista de que já participavam pessoas brancas e tendo diante de si um mar de rostos negros salpicado de rostos brancos, King desfiou seu sonho de liberdade, igualdade e fraternidade: 

“Tenho um sonho de que um dia... os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores sejam capazes de se sentar juntos à mesa da fraternidade....Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia numa nação onde eles não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. ...Tenho um sonho de que meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a meninos brancos e meninas brancas tal como irmãs e irmãos. Hoje eu tenho um sonho!”. King: “Tenho um sonho de que um dia... os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores sejam capazes de se sentar juntos à mesa da fraternidade”

Cabe notar a não referência à ideia de raças humanas, embora desde cedo ela tenha permeado a história dos Estados Unidos, a começar pela separação entre igreja negra e branca e pela proibição legal de casamentos ‘inter-raciais’. Nesse sentido, King começava a remar contra a corrente da história dos Estados Unidos, cuja obsessão em nomear a ‘raça negra’ estava presente até na linguagem de militantes antirracistas.

Nos poucos anos de vida que lhe restavam antes de ser assassinado em 4 de abril de 1968, King dedicou-se a causas sociais que abrangiam protestos contra a guerra do Vietnã e reivindicações de trabalhadores brancos e pobres. É que no seu sonho de paz e integração social só havia lugar para o mérito e talento de cada um, jamais para a cor da pele e aparência pessoal.

Celia Maria Marinho de Azevedo
Historiadora, professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas






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