Peregrinação é entrar em comunhão com a religião e a natureza – Por Raul Marques


Após encerrar sua trajetória profissional com a chegada da aposentadoria, Antônio Manoel Sotello começou a escrever com letras douradas um capítulo especial de sua vida. 

Com o tempo a seu favor, boa dose de coragem e vontade de explorar o novo, tirou do campo das ideias um sonho ousado: se tornar um peregrino.

O que Sotello não imaginava é que nunca mais iria abandonar o cajado, a mochila e o desejo de percorrer caminhos que são misteriosos, históricos, cercados de magia e de fé, essencialmente ecológicos e que têm o poder, muitas vezes inexplicável, de mexer com o imaginário e o que existe de mais íntimo. Sim, Sotello pegou gosto pela aventura. Tudo começou com um desejo, imenso, por sinal. 

Na virada do século, o então diretor administrativo da Unesp de Rio Preto pensou em quão especial seria percorrer o famoso Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, o destino mais procurado. A viagem começou na parte teórica, com leituras. Em 2002, deixou o cargo e começou a tirar o plano do papel. Fez o Caminho do Sol, 240 km entre Santana de Parnaíba e Água de São Pedro. 

Encarou o desafio como preparação para o grande objetivo, que é quase quatro vezes mais extenso. No ano seguinte, conseguiu o que queria. Chegou em Compostela, uma experiência única. Desde então, contabiliza dez peregrinações pelo Brasil. 

“Faço pela questão religiosa, as pessoas e a história. Quando estou na estrada, sinto liberdade. É um voltar para si mesmo.” 

Sotello, hoje aos 68 anos, tem uma peculiaridade: gosta de andar sozinho. Já a aposentada Marciana Lopes, 55 anos, é o oposto. Prefere ter companhia em suas andanças. E olha que contabiliza no currículo 20 peregrinações de grande porte. Fez os mais famosos percursos brasileiros e de países como Espanha (Santiago de Compostela), Itália (São Francisco de Assis), Peru (Machu Picchu) e Venezuela. 

O seu sonho começou na infância com os livros, que se tornaram parceiros inseparáveis em sua vida e profissão como bibliotecária. Quando morava no campo, conheceu a história de Compostela e confessou para as irmãs: ‘vou visitar esse lugar’. Na época, gostava de percorrer a propriedade em busca de orquídeas para a mãe. Aplicou-se na meta só décadas mais tarde. Começou pelo Caminho do Sol, em 2004. E não parou mais.

Faz, em média, dois por ano. Aliás, abandonou o turismo convencional. “É uma forma de conhecer a cultura e as pessoas e superar os próprios limites. Gosto pelo despojamento. Tudo o que preciso tem de caber em 7 quilos de mochila. É viver com o essencial.” 

A paixão de Marciana é tamanha que inspira outras pessoas. Foi o que aconteceu com o aposentado João Tadeu Honorato, 62 anos. Ele começou com estilo, em Machu Picchu. 

Venceu os 70 km em quatro dias. “Fazia caminhada no fim do dia por orientação médica. De tanto ouvir a Marciana, fui e peguei gosto pela coisa.” João já enfrentou 800 km de Compostela (32 dias) e 380 km de São Francisco de Assis (12 dias). Conheceu uma casa medieval, de pedra, construída no ano 600. “Quando a gente caminha, vê coisas que não dá enxergar do carro, como detalhes da natureza, estrada e edificações. O sentido fica aguçado”. 

Sua aventura mais marcante foi a italiana ao passar por igrejas que São Francisco ajudou a reconstruir, lugares em que passou e até dormiu. “Você entra no clima religioso. Isso me deixa feliz e realizado”.

Peregrinar é entrar em comunhão com a religiosidade, história, natureza, cultura e o ser humano. Conheça dez trajetos que podem ser feitos no Brasil.

Na hora de escolher o roteiro, o peregrino tem de acertar a mão em duas questões. A primeira decisão é a escolha do caminho mais adequado para suas pretensões. E é necessário exercitar a arte do desapego, ou seja, colocar na mochila só objetivos necessários para sobreviver, sem sobressaltos, durante o período da empreitada.

A Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela, de São Paulo, orienta que a mochila deve ter no máximo 10% do peso de quem vai carregá-la. A conta é simples: quanto mais peso, maior o esforço físico na jornada. Segundo a associação, é importante carregar o indispensável. Cada pessoa sabe o que isso significa.

Mas é possível imaginar uma lista básica. No quesito roupas, leve uma bermuda, roupas de baixo, três camisetas de manga curta, uma de manga longa, duas calças confortáveis, cinco pares de meia (duas finas e três grossas), agasalho, chapéu, chinelo e toalha de banho pequena. As peças devem ser adequadas para caminhada.

Leve ainda uma bota adequada para trekking, saco de dormir, isolante térmico, capa de chuva, canivete, lanterna pequena, óculos escuro e alfinetes. 

Para higiene, não esqueça da escova, creme dental, sabonete, filtro solar, sabão para lavar roupa e cortador de unha. Carregue agulha, aspirina, comprimidos para dor de dente, resfriado e diarreia, esparadrapo e remédios de uso contínuo. 

Não se esqueça também dos documentos pessoais, passaporte (válido por menos seis meses), seguro médico internacional e carteira de vacinação em dia.

Região conta com dois caminhos religiosos

Quem sonha fazer peregrinação pode começar sua história perto de casa, sem gastar grande quantia ou percorrer demasiada distância. A região tem dois caminhos essencialmente religiosos. Podem ser feitos a qualquer tempo, mas contam com estrutura para receber o visitante apenas em datas comemorativas. 

A caminhada regional mais antiga é a de Castores. De forma ininterrupta, é repetida há 105 anos. 
Sempre em agosto, os peregrinos saem a pé de Rio Preto e percorrem, na margem da movimentada BR-153, em torno de 20 km até o Santuário do Senhor Bom Jesus dos Castores, na vizinha Onda Verde. 

A manifestação de fé emociona e motiva demonstrações de religiosidade, gentileza e compaixão. Há voluntários que, por conta própria, ficam posicionados na rodovia com o nobre objetivo de ajudar. Oferecem copo de água gelada e lanche para recuperar energias.

Neste ano, 50 mil pessoas visitaram o Santuário na data comemorativa -metade foi a pé. A peregrinação começou quando a imagem do Senhor Bom Jesus foi encontrada em uma fazenda da região. Outro caminho que se solidifica a cada ano é o do padre Mariano. 

No próximo dia 9 de novembro, será realizado pela oitava vez. Duas mil pessoas devem percorrer os 7 km da estradinha de terra que separa as paróquias de Santa Apolônia, no distrito de Engenheiro Schmitt, e São Luiz Gonzaga, em Cedral. 

A caminhada é uma forma de refazer os passos do padre Mariano de La Mata Aparício, o primeiro beato da Diocese de Rio Preto. Ele teve um milagre reconhecido pelo Vaticano. 

Em 1996, intercedeu pela recuperação do estudante João Paulo Polotto, 5 anos, ferido gravemente em um atropelamento. Embora seja diferente, o cenário da caminhada remete ao passado. Um tempo em que o carro era luxo e as pequenas distâncias percorridas a pé. 

Durante 11 anos, entre 1949 e 1960, padre Mariano pegou a estrada, ao menos uma vez por semana, para celebrar missas e outros sacramentos.
A magia de Compostela


Ninguém pode dizer que é peregrino sem conhecer o caminho de Santiago de Compostela. A frase é uma pequena brincadeira entre os apaixonados por peregrinação, mas carrega uma verdade: o trajeto espanhol é o mais procurado pelo misticismo que invoca. Não se trata só de uma rota, mas de várias. 

Todas conduzem para o mesmo lugar: a catedral de São Tiago, em Santiago de Compostela, Espanha. Na igreja, repousam os restos mortais do santo, um 12 apóstolos de Jesus. O material está guardado em uma arca de prata.

A tradição revela que Tiago morreu em nome de sua fé. Ao retornar a Jerusalém, foi decapitado no ano 44. Depois do martírio, seu corpo foi levado por discípulos para a região da Galícia. 

Séculos depois, a tumba foi descoberta, entre 820 e 830. Assim, surgiu um templo e foi iniciada a peregrinação. Patrimônio da Humanidade, o Caminho de Santiago não é percorrido apenas pela questão religiosa, mas também por motivos espirituais, culturais, turísticos e históricos.

Independentemente da finalidade, é um lugar propício para refletir. A rota mais tradicional é conhecida como Caminho Francês. É formada por 800 km. Começa em Saint Jean Pied de Port. Nessa rota, estão localizados o maior número de albergues religiosos, públicos e privados e infraestrutura de apoio. E é também o mais rico em rituais, mitos e lendas. No livro: 'O Diário de Um Mago', Paulo Coelho conta sua jornada de peregrinação no trajeto.

Por toda a Europa, existem opções para acessar o caminho. De acordo com bolso, disponibilidade e capacidade física, é possível escolher trajetos menores ou maiores, como Pamplona (704 Km), Burgos (484 km) e Ponferrada (205 Km). 

Para ter direito ao certificado de peregrino, o Compostelana, é necessário caminhar pelo menos os últimos 100 km da rota milenar. Assim, é possível sair de Sarria (115 Km) ou d'O Cebreiro (154 Km), o pórtico da Galícia



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