A Idade Média foi muito mais uma idade da luz do que das trevas – Por Rafael de Mesquita Diehl



Conheça as luzes que o seu professor anticlerical e marxista escondeu de você na escola. 

A longa noite dos mil anos. Assim muitos haviam pintado com pesadas tintas o período que se estende da queda do Império Romano do Ocidente nas mãos dos bárbaros hérulos em 476 à queda do Império Romano do Oriente com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. Outros marcos divisórios foram propostos, é verdade, mas fundamentalmente a Idade Média é considerada o período contido entre os séculos V e XV da era cristã.

O termo nasceu de forma pejorativa. Esses mil anos seriam uma época mediana, separada por duas gloriosas épocas de esplendor cultural, a Antiguidade Clássica e os tempos da Renascença. O Iluminismo aumentou a carga pejorativa com seu característico anticlericalismo, criando a imagem de uma era estagnada, onde o dogmatismo clerical tudo dominava e impedia a liberdade e o progresso do conhecimento humano. 

Nem é necessário deter-se longamente na igualmente conhecida simplificação anacrônica feita pelo marxismo, no qual a Idade Média seria uma época de senhores feudais exploradores e de servos explorados, conformados pelo “ópio” que lhes era fornecido através do discurso religioso da Igreja. Por outro lado, o romantismo fantasiou essa época com cavaleiros e damas quase imaculados e castelos e armaduras engenhosamente desprovidos de qualquer praticidade.

A verdade é que geralmente vemos uma dessas duas imagens de Idade Média. O pessimismo de uma época imobilista sem liberdade e progresso ou o fantasioso cotidiano de cavaleiros sempre heróicos com uma longa rotina de salvar donzelas, rodeados por criaturas fantásticas.

Permitam-me dizer-lhes que a Idade Média é uma construção artificial, uma forma de classificar o tempo conforme determinados critérios, que os homens usam para diferenciar um determinado tempo de outro. Seja como for, o nome “Idade Média” se consolidou, tendo sido adotado por historiadores e homens de toda sorte, sejam eles anacrônicos, idealistas ou devotados a entender a época que estudam dentro de seu próprio contexto. 

Como História diz respeito não somente ao tempo, mas também ao espaço, é preciso recordar que a catalogação do período medieval se refere com maior propriedade ao ambiente da Europa Ocidental e parte do Mediterrâneo.

Contudo, mil anos são muita coisa. Para melhor estudar a Idade Média, os estudiosos a subdividiram. Baseando no sistema socioeconómico do feudalismo (atualmente os historiadores já distinguem entre feudalismo e senhorio, abandonando o critério marxista), dividiram o período medieval entre Alta Idade Média (desenvolvimento e apogeu do feudalismo) e Baixa Idade Média (crise e desestruturação do feudalismo), no qual o século XI apareceria como um marco divisório.

Posteriormente, os historiadores adotaram uma nova divisão, levando em conta aspectos mais complexos: Antiguidade Tardia (do século V ao VII, ou mesmo iniciando-se nos séculos II-III, no qual se observam a desestruturação do Império Romano do Ocidente e a formação dos reinos romano-bárbaros), Alta Idade Média (séculos VIII-X, característicos pelo ressurgimento da ideia de Império na Cristandade ocidental com as dinastias carolíngia e otônida, surgimento e formação do senhorio e do feudalismo), Idade Média Plena ou Central (séculos XI-XIII, marcados pelo surgimento e auge da Cavalaria, pelo ápice do poder temporal pontifício, surgimento das universidades, crescimento da vida urbana e comercial, Cruzadas, etc.) e Baixa Idade Média (séculos XIV-XV, onde se destacariam a crise e desestruturação do feudalismo, uma maior centralização do poder nos reinos, o declínio do poder temporal do Papado e novas formas de pensamento que conduziriam à chamada Renascença ou Renascimento. Também poderíamos notar nesse período a expansão ultramarina europeia e a queda do Império Romano do Oriente).

As luzes de que não falam

Tendo explicado brevemente em que consiste a Idade Média, gostaria agora de apontar quatro características dessa longa época que não se coadunam com a imagem de uma Idade das Trevas.

Interesse pelo saber

No ano de 1277 morria um homem em um acidente causado pelo desabamento de um balcão para estudos e observações científicas que havia feito em sua residência: essa residência era o palácio papal de Viterbo e esse homem era Pedro Hispano, João XXI, o único papa português da História. O conhecimento era valorizado por grande parte dos homens da Idade Média, especialmente pelos clérigos, que julgavam a instrução dos demais como uma de suas funções.

Desde a Antiguidade Tardia os mosteiros foram centros de preservação do conhecimento antigo dos gregos e romanos. Mas esses mosteiros não somente preservavam e copiavam as obras antigas, como também refletiam sobre elas e teciam comentários sobre as mesmas.  

Já entre os séculos VI e VII, o Livro das Etimologias fora escrito pelo bispo Isidoro de Sevilha, buscando compilar todo o conhecimento de seu tempo. No século XII, o cônego Hugo da Abadia de São Víctor, na França, escrevia em uma de suas obras exortando seus alunos a buscarem o estudo, sem desprezar nenhuma forma de conhecimento.

Com o surgimento das universidades, a troca de informações e escritos e o debate de ideias, frequentemente acalorado, se intensificou. Esse interesse pelo saber traduziu-se também no âmbito prático: os estudos jurídicos em Direito Romano e Canônico produziram códigos de leis e o século XIV, famoso pela tenebrosa Peste Negra, nos legou dois artefatos de atual utilidade: o relógio mecânico e os óculos.

Amor à Beleza

A Idade Média teve vários estilos artísticos e amou a beleza como reflexo da ordem e da bondade divinas. Lembravam-se os homens do medievo de Santo Agostinho ao dizer que Deus tudo havia feito com número, peso e medida. A Criação era vista como uma construção ordenada, fruto da inteligência divina. A Criação também era vista como uma bela polifonia, onde todas as criaturas cantavam, em suas distintas vozes, a Glória de Deus.

Um dos homens mais austeros da Igreja, o monge Bernardo de Claraval, escreveu em um sermão o mais encantador elogio da beleza do corpo humano. A beleza das igrejas românicas e góticas ainda hoje nos impressiona pela monumentalidade e doce harmonia da unidade de suas formas. Mesmo em suas épocas de maior dificuldade, o período medieval produziu obras artísticas de incrível sensibilidade e beleza.

Dinamismo

Dinamismo é uma palavra que, a meu ver, define a essência da Idade Média. A começar pelas cortes itinerantes de seus monarcas que tardaram a se fixar em capitais. Na política, nas artes, no meio erudito predominam as transformações. Quando no século XII o abade Suger decide fazer uma reforma para ampliar sua abadia de St-Dennis, na França, gera uma arquitetura completamente nova, visando expressar em suas linhas e em sua obsessão pela entrada de luz no edifício a Teologia da Luz, fruto da redescoberta dos tratados de influência neoplatônica do Pseudo-Dionísio Areopagita.

Pela mesma época, a sobreposição de vozes em cima da tradicional melodia do cantochão gregoriano abria o caminho para a polifonia na música. Se pensarmos em ambientes bastante heterogêneos como os reinos da Península Ibérica ou as cidades italianas, esse dinamismo torna-se ainda mais notável. Entretanto, o dinamismo mais característico foi o das universidades: o homem de saber medieval era um cidadão da Cristandade, deslocando-se frequentemente em busca do conhecimento e dos mestres famosos.

Inconformismo

Em muitos livros didáticos vemos aquela visão herdada pelo marxismo de que o homem medieval era conformado com os males e injustiças que sofreria por resignar-se à vontade da Providência Divina. Não é apenas uma notação estulta de Providência e aceitação da vontade divina, como também um desconhecimento de alguns fatos e elementos da Idade Média.

Os tão propagados abusos do clero recebiam na época críticas de homens da Igreja mais ácidas do que de muitos reformadores protestantes, como as críticas escritas no século XI pelo cardeal e monge beneditino Pedro Damião. A jovem Catarina de Siena criticava os vícios da Cúria Pontifícia e a relutância de Gregório XI em retornar à Roma na frente do próprio papa e seu Colégio Cardinalício. A consciência de que a moral e a ética deveriam ser também vividas no âmbito da política era algo bastante conhecido dos homens de saber medievais.

Uma farta literatura de Espelhos de Príncipes, tratados moralizantes destinados aos monarcas, floresceu ao longo de toda a Idade Média. Os vícios dos homens, especialmente os de poder, eram apontados por eclesiásticos e explorados como argumento pelos movimentos heréticos. As danças da morte, a qual o povo igualmente tinha acesso, escarnecia dos pecados dos homens de todas as condições que se esqueciam frequentemente de que a morte um dia lhes pediria contas.

A “Idade da Luz”?

A medievalista Régine Pernoud, desejosa de desmistificar a Idade Média enquanto um período tenebroso, chamou-a de “Idade da Luz”. Naturalmente, a historiadora não era ingênua para achar que o medievo fora perfeito e nem mesmo o papa Leão XIII nutria tal suposição quando indiretamente referiu-se ao período medieval como “um tempo em que a filosofia do Evangelho governava as nações”.

É importante que, ao refutarmos o mito da Idade das Trevas, não cultivemos uma mentalidade arqueologista e romântica como a dos criadores da arte neogótica, que viam na Idade Média a perfeição cristã, tratando tudo o que a antecedera como mera preparação e tudo o que a sucedera, lamentável decadência. A Idade Média foi um período com qualidades e defeitos como os demais.

O que a diferencia de outros tempos é uma maior influência que os valores cristãos exerceram sobre o âmbito social e institucional, tendo isso contribuído para muitas melhorias, embora não fosse possível, naturalmente, erradicar todos os males nesse campo onde joio e trigo se misturam até que chegue a colheita.

É bom sempre termos diante de nossas consciências que a melhor época que há é aquela na qual estamos inseridos, pois foi aquela na qual Deus nos colocou e aquela na qual temos a capacidade de trabalhar por mudanças e melhorias. Essas melhorias não nascem de grandes ações, mas sim de nossa conduta diária, que pode fazer a diferença.


Texto de Rafael de Mesquita Diehl, professor e historiador formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando pela mesma universidade. Publicado pelo site Revista Vila Nova.




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