René Girard e a superação da violência – Por Maria Clara Lucchetti Bingemer*




Novembro começou com uma triste notícia: a morte de René Girard. Nascido em Avignon, França, há 91 anos, este grande pensador de nossa época faleceu em Stanford, Estados Unidos, onde vivia já há alguns anos. 

Figura maior do pensamento contemporâneo, autor de muitos livros e escritos, Girard é dificilmente classificável entre as disciplinas de ciências humanas e sociais, em meio às quais transitou. 

Não é nem crítico literário, nem etnólogo, nem exegeta, mas é tudo isso ao mesmo tempo. E, no entanto, é mais conhecido como antropólogo e filósofo, além de especialista em literatura, e assim foi introduzido na Academie Française, em 2005.

Trata-se de um autor difícil, que se des-vela e seduz à medida que se avança na leitura e na exploração de seu pensamento.  Quanto mais nos aprofundamos na leitura de suas obras, mais percebemos que ele nos conduz ao coração dos problemas de nossa época, lançando sobre eles uma luz que resgata o conhecimento clássico, embora seja muito nova.

O perfil religioso de Girard também foge aos padrões costumeiros. Convertido ao catolicismo na época em que preparava seu primeiro livro, em 1961, desenvolveu sua obra buscando sempre isenção e rigor próprios de um grande pensador.  Submeteu suas teorias ao crivo da ciência e sempre afirmou que nenhum apelo sobrenatural tinha o direito de romper o fio condutor das análises antropológicas. Porém, raros são os pensadores contemporâneos que leram as Escrituras com a profundidade e ao mesmo tempo a originalidade com que ele o fez.

O centro de seu pensamento está na tensão entre violência e sagrado, a partir da categoria do desejo mimético. E ao elaborar esta teoria, encontra na Bíblia e nos Evangelhos sua grande inspiração. Aparentemente, afirma, os relatos evangélicos são semelhantes aos mitológicos: ao centro, há uma vítima torturada e executada pela multidão unânime.  E este evento é rememorado pelo culto e pelo sacrifício ritual. Assim Dionísio, assim Jesus.  

O paralelo parece perfeito exceto em um ponto: a vítima é inocente. Entre Dionísio e Jesus, não há diferença quanto ao mártir.  Mas enquanto Dionísio aprova o linchamento da vítima única, Jesus e os Evangelhos o desaprovam. Enquanto os mitos repousam sobre uma perseguição generalizada e consentida, e são construídos sobre a mentira da culpabilidade da vítima, o judeu-cristianismo destrói essa unanimidade para defender as vítimas injustamente condenadas e trazer à luz a responsabilidade dos carrascos injustamente legitimados.

Não é de admirar que o pensamento de René Girard tenha recebido um acolhimento extremamente positivo e favorável por parte dos teólogos da libertação. Com seus mais ilustres representantes manteve inclusive um diálogo que resultou em um livro disponível em português.  Os diálogos ali  transcritos entre Girard e os teólogos latino-americanos giram em torno dos mecanismos idolátricos e violentos que produzem vítimas e as sacrificam nos altares do mercado e do consumo contemporâneo.

Para Girard, a “boa nova” evangélica afirma claramente a inocência da vítima, denunciando e desmascarando assim o germe da destruição da ordem sacrificial sobre a qual repousa o equilíbrio das sociedades. Os relatos da Paixão de Jesus nos evangelhos, longe de tentarem um embelezamento estético da violência e da crueldade humanas que fazem repousar a ordem do mundo sobre o assassinato, descrevem toda a sua feiura repelente sem complacência.

E sobre esse ritual macabro o desejo mimético exercerá um papel não menos macabro, reproduzindo e imitando a violência fundamental para exorcizá-la. E o que é pior, sem consegui-lo. O Deus da Revelação, como Girard mostra, não mimetiza a violência humana e seus mecanismos vitimários.  Pelo contrário, rompe a espiral da violência, assumindo-a desde dentro e assim redimindo-a.

A recepção de seus escritos pela crítica é bastante plural. Duramente criticado, inclusive dentro da área da teologia e das ciências da religião, Girard replicará que para entrar na inteligência de suas teorias há que haver o pressuposto de uma conversão e mesmo de uma graça. 

Talvez, enquanto ainda vivemos o luto de sua ausência no mundo do pensar contemporâneo, possamos recordar algum dito de Jesus que podemos aproximar da afirmação que acima citamos.  

“Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo tira parte da veste, e fica maior a rotura. Nem se põe vinho novo em odres velhos; do contrário, rompem-se os odres, derrama-se o vinho, e os odres se perdem. Mas põe-se vinho novo em odres novos, e ambos se conservam” (Mateus 9.16,17).

Para ser capaz de penetrar nesta teoria que desconstrói a violência a partir de dentro é preciso, sem dúvida, passar pela conversão e ser revestido pela graça de uma novidade fundamental, tal como dizia René Girard. Que ele descanse em paz. E que nós, que continuamos defrontando-nos com a violência de cada dia, destruidora de vítimas inocentes, possamos ser fiéis a seu inestimável legado.

 *professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc).






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