Lira Neto: "A Igreja necessita do capital simbólico do Pe Cícero"


O jornalista e escritor Lira Neto, autor da biografia Padre Cícero:

Poder, Fé e Guerra no Sertão, publicada em 2009 pela Companhia das Letras, acredita que a decisão da Igreja é parte de uma estratégia de resgate. 

“A Igreja necessita do capital simbólico do Padre para se contrapor à ofensiva das religiões neopentecostais”, opina Lira, que em entrevista a O POVO ainda fala sobre a transgressão da fé romeira e o força do Padim enquanto mito. 

Transformar em sangue a hóstia entregue à beata Maria de Araújo foi o detalhe que desestabilizou a carreira eclesiástica de Padre Cícero Romão Batista. Afastado da Igreja, proibido de exercer o sacerdócio, enveredou pelos caminhos da política, tornando-se o primeiro prefeito da recém-emancipada Juazeiro do Norte, em 1911. Igualmente polêmica foi sua relação de proximidade com Lampião, de quem buscava apoio para combater a Coluna Prestes.

No dia 13 de Novembro o bispo da diocese do Crato, cidade vizinha a Juazeiro do Norte (CE) dom Fernando Panico, anunciou que havia recebido uma carta do Vaticano com a decisão do papa Francisco: Padre Cícero estava oficialmente reconciliado com a Igreja. A revisão do caso, solicitada há nove anos por dom Fernando, é o primeiro passo de um processo de reabilitação que pode culminar com a beatificação e canonização do Padim.

O Povo - Essa mudança de posicionamento da Igreja em relação ao Pe. Cícero altera o modo como enxergamos sua figura? Ou a fé dos romeiros e da população, de um modo geral, independe desse reconhecimento? Em que medida a revisão desses processos ajuda na configuração e fortalecimento da figura de “mito” que lhe é atribuída?


Lira Neto - A chamada “reconciliação” é, sem dúvida, um episódio histórico. Mas creio que o romeiro autêntico dispensaria, como sempre dispensou, a chancela da Igreja na questão relativa ao Padre Cícero. O que me interessa mais, em todo esse processo, é perceber como se dará a tentativa de cooptação da fé popular por parte do rito oficial. No meu entender, a fé romeira é essencialmente transgressora, uma vez que também sempre se mostrou independente da autorização eclesiástica dos padres, dos bispos e até mesmo do Papa para louvar um sacerdote maldito, proscrito da Igreja.
O Povo - Tenho a impressão de que grande parte da força mítica criada em torno de Pe. Cícero vem justamente dessa capacidade de contestar a Igreja, atuando de forma paralela e, inclusive, intervindo em assuntos de alçada política. A revisão do processo não destruiria um pouco dessa personalidade contestadora? Ou a Igreja precisa dessa dose de rebeldia?

Na verdade, a Igreja necessita do capital simbólico do Padre Cícero para se contrapor à ofensiva das religiões neopentecostais no País e, de forma específica, no Nordeste. Não tenho dúvidas de que o Vaticano se libertou de grande parte dos preconceitos históricos e eurocêntricos que condenaram Padre Cícero à suspensão das ordens e, principalmente, condenaram a beata Maria do Araújo ao esquecimento e ao ostracismo. Mas é inegável que estamos assistindo, além disso, a um embate político vital, a uma disputa por territórios simbólicos, a uma guerra por rebanhos.
O Povo - Assistimos ao gradativo enfraquecimento da Igreja Católica junto às novas gerações - entre 2007 e 2013, o número de católicos declarados caiu de 64% para 57% no Brasil. A mudança no posicionamento da Igreja em relação ao Pe. Cícero pode ser uma tentativa de fortalecer sua presença no País?

Sem dúvida. Todo o processo de reabilitação do Padre Cícero teve início em 2001, quando o então cardeal Ratzinger (futuro Bento XVI) enviou carta à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sugerindo a reabertura dos arquivos históricos sobre Cícero Romão Batista. Desde aquele primeiro momento, o Vaticano entendia que a imensa legião romeira poderia ser um “antídoto” contra os neopentecostais e, assim, não deveria permanecer à margem da liturgia e do rito oficial.
O Povo - Continuamos precisando dessas figuras icônicas para direcionar nossa fé? A religião sobreviveria sem isso?

Não me sinto autorizado para responder a essa pergunta. Não sou um homem de fé religiosa. Não reconheço padres, pastores ou quaisquer outros sacerdotes como mediadores de minha relação com o que costumeiramente se chama de “sagrado” ou de “divindade”.
O Povo - Você pretende acrescentar essa reviravolta histórica ao seu livro? Um novo capítulo, talvez, em uma edição atualizada?

O livro Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão tem recebido reimpressões constantes. A obra já ultrapassou a marca de 50 mil exemplares vendidos. Pretendo, sim, numa das próximas tiragens, escrever um capítulo que atualize a história. 

O Povo - A figura do Pe. Cícero pode ganhar um maior destaque junto aos agentes culturais depois dessa reviravolta? Você o vê como um possível “novo herói” literário?

Padre Cícero continua sendo um personagem inesgotável. Além do mais, não acredito em biografias definitivas. Sem dúvida, outros livros virão. Com novos enfoques, baseados em novas documentações, escritos sob novas perspectivas e olhares.





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