Livros da Década (I) - Por Henrique Raposo




Entre a literatura e a história, aqui fica um possível top 30 dos livros da década
2000-2009.



30.º: Nicolas Baverez, "Le France qui Tombe", Perrin, 2003

No início da década, este livro foi o precursor de uma tese revolucionária, que se tornou um lugar comum já no final da década: o declínio da Europa e do Atlântico perante a ascensão dos asiáticos e do Pacífico . Neste pequeno grande livro, o petit Aron, Nicolas Baverez, criticava a forma como a elite francesa recusava enfrentar o declínio da França. Paris mantinha (e mantém) um discurso de grande potência, mas revelava (e revela) um défice total ao nível das capacidades que definem as grandes potências. Existia (e existe) um abismo entre a auto-imagem da França e o seu real poder no mundo .

29.º: Francisco José Viegas, "Longe de Manaus", Asa, 2005

Viegas reinventa um género (o policial), e, acima de tudo, faz uma notável biografia de Portugal. Ou melhor, faz uma biografia dos diferentes "Portugais". A trama policial é aqui um pretexto para Viegas interligar todos os "Portugais" possíveis, do presente e do passado. Há o Portugal brasileiro. Há a solidão das aldeias do Douro. Há a guerra urbana de Santo Ovídio. Há a memória da guerra em África. E há ainda a guerra sexual que era esse Portugal africano de 1972. Um grande candidato ao título de romance português da década..


28.º: Walter Russell Mead, "Special Providence", Routledge, 2002

O livro fundamental para compreendermos a história da política externa dos EUA. Mead consagra a existência de quatro grandes escolas na política externa americana: (1) "jeffersonianos", realistas tímidos que defendem o isolacionismo; (2) "jacksonianos", as vassouras nacionalistas que varrem tudo o que ameaça os EUA; (3) "wilsonianos", idealistas que defendem a expansão da democracia; (3) "hamiltonianos", realistas agressivos que constroem uma sociedade de estados liberal. Bush foi "wilsoniano" e "jacksoniano" (um idealista de botas cardadas). Obama é um "hamiltoniano" clássico.



27.º: Heinrich August Winkler, "Germany - the Long Road West", Oxford University Press, 2007

Um dos momentos historiográficos da década. Em dois volumes, Winkler narra a história da Alemanha desde a pré-história alemã (1789) até à reunificação no final do século XX. Importa atentar no subtítulo. Até 1945, o mundo alemão foi a negação do "Ocidente". A cultura alemã estava ligada a formas de pensar românticas e místicas (isto é, reaccionárias e culturalistas) que recusavam o iluminismo americano, inglês e francês. A partir de 1945, a Alemanha rasgou com o seu passado romântico, e passou a caminhar na direcção dos valores ocidentais. Para os alemães, a Idade Média só acabou em 1945.

26.º: Amartya Sen, "Identidade e Violência", Tinta da China, 2007

Um dos ensaios da década. Amartya Sen critica a direita do "choque de civilizações" e a esquerda do " multiculturalismo " . Estas duas escolas, aparentemente distintas, partilham o mesmo erro intelectual: acham que o "outro" (isto é, o muçulmano) tem apenas uma identidade, a identidade religiosa. A agressividade externa da direita perante o "mundo muçulmano" e o paternalismo interno da esquerda perante as "comunidades muçulmanas" têm, portanto, a mesma raiz: o eurocentrismo que reduz o "outro" a um perfil unidimensional.

25.º: Ramachandra Guha, "India after Gandhi", HarperCollins, 2007

A mente eurocêntrica considera que a grande epopeia democrática do século XX foi a democratização da Europa do Sul e da Europa de Leste. Neste livro, Guha conta uma outra história: a grande epopeia democrática do nosso tempo foi a consolidação da democracia indiana após-1947. A maior democracia do mundo assenta numa constituição secular que funciona como chão comum institucional para um pluralismo cultural ímpar. As diferentes castas, religiões e línguas indianas convivem dentro do mesmo espaço político criado pelo constitucionalismo liberal .

24.º: Tony Judt, "Pós-Guerra", Edições 70, 2006

Tony Judt apresenta uma imagem iconoclasta da Guerra-Fria: 1945-1989 não foi o combate global entre EUA/capitalismo e URSS/comunismo, mas sim a perpetuação do trauma da II Guerra Mundial. A Europa só colocou a II Guerra na gaveta em 1989. Isto porque 1945 não significou a libertação para metade da Europa. Na Europa de leste, a II Guerra não representou o fim de Hitler; representou, isso sim, o início do jugo de Estaline. A Europa de leste, como salienta Judt, foi "uma extensão colonial" de Moscovo. E esse colonialismo vermelho só acabou quando o mundo caiu.

23.º: Sayd Bahodine Majrouh, "A Voz Secreta das Mulheres Afegãs", Cavalo de Ferro, 2005

O livro é de 1995, mas esta versão portuguesa de Ana Hatherly merece destaque . "A Voz Secreta" reúne poemas de um género popular cantado em segredo pelas mulheres afegãs - o landay. Estes cantares femininos não são sussurros místicos e inocentes. Pelo contrário: o landay é uma ânsia carnal. Estas mulheres gozam com o incumprimento sexual dos maridos, que passam o dia e a noite a falar de religião: "não haverá um louco nesta aldeia?/As minhas calças cor de fogo ardem-me nas coxas". Não há filósofo ou intelectual que consiga reunir semelhante poder de fogo contra o fundamentalismo islâmico. Um livro bravo e belo. O seu autor, S. B. Majrouh, foi assassinado.


22.º: Lawrence Wright, "A Torre do Desassossego", Casa das Letras, 2007

Esta é a história do islamismo moderno , desde a raiz intelectual (Sayyid Qutb, 1906-1966) até ao 11 de Setembro. Merece destaque a forma como Lawrence Wright consegue descrever o nojo que os islamistas sentem pelo modo de vida ocidental. Wright entra literalmente na cabeça dos fanáticos. Em Nova Iorque ou Hamburgo, os islamistas não vêem um modo de vida cosmopolita. Vêem, isso sim, um corrente constante de pecado. Por outras palavras, os descendentes de Qutb odeiam aquilo que nós amamos, a começar pela liberdade das mulheres.

21.º: Rentes de Carvalho, "Ernestina", Quetzal, 2009

"Ernestina" é o romance autobiográfico de Rentes de Carvalho, a estrela portuguesa da Holanda. Ao contar a história da sua infância, Rentes de Carvalho descreve a vida em Trás-os-Montes e no Porto durante a primeira metade do século XX. Assim, "Ernestina" acaba por ser a biografia de milhares e milhares de famílias portuguesas que emigraram dos campos para as cidades ao longo do século XX. É bom não esquecer que o êxodo rural (que a Inglaterra conheceu nos séculos XVIII e XIX) só surgiu em Portugal no século passado. Rentes de Carvalho conta esta história de atraso com uma ternura áspera .

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