Sou 100% francês, mas para eles continuo sendo um imigrante, diz tunisiano que mora na França - Por Le Monde


Pelo telefone, era possível sentir que ele estava muito nervoso. “Você ouviu o que ele disse? A respeito das civilizações? Mas não é possível, será que nunca vão parar com isso?” Havíamos marcado um encontro para entender sua raiva. 

E foi um homem jovial que desceu para nos receber nesta tarde, no andar de baixo de seu prédio localizado no conjunto habitacional Cité des 4000, desta vez do lado norte, logo abaixo de uma alça de acesso.

Aos 54 anos, Mohammed Aouichi, divorciado e pai de três filhos, é agente logístico da UPS no aeroporto de Roissy. “Você vai conhecer meu palácio”, ele brinca, entrando em sua quitinete “melhorada”.

Mas seu rosto se fecha quando falamos em Nicolas Sarkozy. “Não aguento mais ele. Nem ele, nem seus ministros Guéant, Hortefeux, Besson. Desta vez, foi Guéant nos dizendo que existem civilizações melhores que outras, antes foi Hortefeux, que dizia ‘quando tem um deles, tudo bem, é quando são vários deles que temos problemas’... E, toda vez, Nicolas Sarkozy os apoia. Eu não entendo; na condição de presidente, de ministro, tem certas frases que você não deve dizer. Você não pode incitar a discriminação e o ódio entre os povos...”

Nascido na Tunísia de pais argelinos, Mohamed Aouichi chegou à França em 1962. Assim como outros habitantes da comuna de La Courneuve que encontramos, ele passou seus primeiros anos na França em uma favela, em Pantin, antes que sua família se mudasse para um apartamento todo equipado do recém-terminado bloco Balzac. “Banheiro, gás e quartos de verdade! Para nós, que estávamos saindo da favela, era um luxo!”, ele lembra. “Era uma outra época: ainda havia grandes áreas verdes, e o leiteiro entregava seu leite com sua charrete!”. Ele viveu ali por 25 anos, e nunca mais deixou a cidade desde então.
 

“Estão cansados das misturas”
 

Ao considerar que “as civilizações não são todas iguais”, Claude Guéant afirmou não visar nenhuma civilização em particular. Mas ele citou, ao acaso, dois exemplos se referindo ao islamismo: o uso da burca e as orações de rua.

Mohamed Aouichi se apresenta como um “muçulmano moderado”. Ele é contra o uso do véu, não gosta de ver gente rezando na rua. Mas essas palavras o magoaram, pois se falou em uma civilização como um todo. 

E ele, então, francês, muçulmano, filho de argelinos criado na França, à qual civilização ele pertence, na visão de Claude Guéant? E na visão daqueles que o escutam? “Estão cansados de misturas. Toda eleição presidencial é a mesma coisa, querem assustar com os imigrantes, os muçulmanos, os subúrbios”.

Uma longa passagem da entrevista à “Figaro Magazine” de sábado (10), na qual Nicolas Sarkozy esboçou os contornos de seu futuro projeto presidencial, se dedicava à imigração. Ele falou especificamente em duas ondas: uma antiga, “de uma comunidade cultural e religiosa muito próxima de nossa história” que “pudemos integrar ao caldeirão republicano”, e uma outra “mais recente” que “é diferente”. 

Ao dizer que era contra os estrangeiros poderem votar nas eleições locais, ele alegou o risco de ver cantinas se tornando “halal” [que segue os preceitos islâmicos] e piscinas reservadas para mulheres.

“Os políticos misturam tudo para mexer com o medo das pessoas. E depois eu vejo no dia a dia esse medo nos olhos delas, olhares de reprovação para mim, pelo fato de que tenho um emprego, por exemplo...” ele explica. 

“Tenho nacionalidade francesa, servi o Exército, cantei a Marselhesa. Respiro e durmo  a França, sou 100% francês. Mas, para eles, continuo sendo um imigrante. Então o que devo fazer? Cheguei à França bem novinho, fiz todos meus estudos na França, sou um ardoroso defensor da laicidade, sou um homem honesto, então me diga: o que mais preciso fazer para que simplesmente me vejam como um francês?”, ele se revolta.

E diz ainda: “Estou cansado do fato de que sempre só olhem para o passado, inclusive que certos imigrantes ainda se refiram à colonização. Acabou, é preciso seguir em frente, foi isso que ensinei a meus filhos. Mas, toda vez, essas declarações estigmatizantes nos jogam para trás.”

Ele fala sobre seus três filhos: o mais velho trabalha com segurança, a segunda estuda administração e a última está prestando vestibular para literatura. “Não é por mim que isso me magoa. É por eles. Eles adoram a França e não quero que eles passem pelo que passamos, pela discriminação”. 

Em alguns minutos, ele listou os exemplos de jovens com Bac+5 [algo equivalente a um mestrado] que não conseguem encontrar emprego apesar de seus diplomas. “Hoje, meus filhos sonham em ir trabalhar no exterior. Um amigo foi morar na Austrália: lá, seu nome magrebino nunca causou problemas!”, ele conta.

Para a eleição presidencial, ele fez sua escolha: no primeiro turno, votará em François Bayrou. “Porque, ao contrário de François Hollande, ele não promete mundos e fundos. Aqui, desde Mitterrand, não se acreditam em belas promessas. Bayrou é sincero: ele nunca escondeu as dificuldades. E ele tem uma postura presidencial, ele nunca eleva o tom de voz. Ele não procura incitar o ódio entre as pessoas dizendo que umas são melhores que outras”.

“Liberdade, igualdade, fraternidade - acredito nisso. Mas seria bom que houvesse fraternidade também, para que a França reencontrasse seu prestígio”, ele conclui antes de acrescentar: “É um país que possui tantos belos valores, não podemos aceitar que uns poucos os sabotem, falando qualquer coisa.”

"Meus valores para a França” era o título da grande entrevista através da qual Nicolas Sarkozy esboçou sua campanha.

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