Entre a cruz e o Estado


No alto de uma colina, sobre a baía de Havana, repousa uma estátua. Mas o rosto esculpido em mármore carrara não é o do líder revolucionário Che Guevara, tampouco do ex-presidente Fidel Castro. 

Com 20 metros de altura e 320 toneladas, o "Cristo de Havana" foi inaugurado em 24 dezembro de 1958, apenas 15 dias antes de a revolução estourar na capital, e nunca foi removido. Recentemente, inclusive, foi restaurado pelo Estado, nos preparativos para a visita do Papa Bento XVI, que deixou a ilha na quarta-feira após três dias de visita. 

A curiosa contradição envolvendo o monumento parece ser também uma característica inerente à recente atuação da Igreja Católica na ilha comunista, tentando equilibrar seu papel na defesa dos direitos humanos com as conquistas alcançadas com a liberdade religiosa.
A Igreja Católica nunca foi banida, mas Cuba era oficialmente um país ateísta até 1992. O governo revolucionário expulsou centenas de padres e freiras da ilha, apreendeu bens da Igreja, proibiu o acesso dela aos meios de comunicação e a filiação de católicos praticantes ao Partido Comunista de Cuba (PCC).
- Isso mudou com a abertura econômica. Antes, o governo tinha um controle sobre a Igreja, os católicos eram vigiados, e isso repercutia na vida cotidiana das pessoas. As igrejas ficavam vazias. Os católicos não podiam fazer alguns cursos na universidade, como jornalismo e psicologia - explica a teóloga cubana Nívia Núnez de La Paz, professora de filosofia e ética da faculdade Fisul, em Garibaldi (RS).
A relação Igreja-Estado começou a melhorar em meados dos anos 1980, quando Fidel Castro, pressionado pelo movimento da Teologia da Libertação na América Latina, mostrou disposição para o diálogo. No início de 1990, coincidindo com o colapso da União Soviética, principal aliado de Cuba, Fidel substituiu a palavra "ateu" por "secular" na Constituição, liberou a entrada de católicos no PCC, e permitiu a abertura de uma agência de Cáritas, entidade católica de assistência humanitária, em Cuba. 
Em 1996, Fidel Castro foi a Roma para convidar o Papa João Paulo II a visitar Cuba. Pouco antes da chegada do Pontífice, em janeiro de 1998, Castro restabeleceu o feriado nacional no Natal.
- Hoje a situação dos católicos na ilha é tranquila. E isso se deve em grande parte à Teologia da Libertação, principalmente ao trabalho do frei Betto, tentanto mediar o Estado cubano e a Igreja - lembra o teólogo e expoente do movimento Leonardo Boff. - Em Cuba, a Igreja adotou o termo "Teologia da Reconciliação", que tem uma perspectiva mais religiosa e busca reconciliar o ser humano com a nova sociedade que surgiu. A Igreja Católica em Cuba é dialogante, entende que o socialismo prega valores comuns aos cristãos, como a solidariedade e igualdade.

Em busca de mais espaço, Igreja aposta em caridade

Hoje, Estado e Igreja parecem trabalhar lado a lado. O governo tomou a iniciativa incomum de declarar feriado na quarta-feira, quando o Papa realizou a missa para uma multidão na Praça da Revolução, em Havana.
- As igrejas, de uma forma geral, tiveram um papel importante na abertura de Cuba. Na questão econômica, porque produtos e medicamentos entravam pela Igreja. E na dimensão espiritual, já que há essa lacuna em um país onde o governo tem uma postura racionalista, definindo o cotidiano da sociedade - ressalta Nívia.
A Igreja Católica em Cuba, por sua vez, está ocupada em conquistar espaço novamente. E a caridade tem um papel-chave nisso. Na paróquia de Jesus do Monte, até mesmo ateus vão à Igreja para aulas gratuitas de computador. Membros do clero e funcionários lançaram um ambicioso programa comunitário, oferecendo todos os tipos de serviço, como café da manhã para idosos e medicamentos gratuitos - que antes eram de responsabilidade exclusiva do Estado.
Os cursos noturnos oferecidos pela Igreja em administração de empresas estão cheios de jovens empreendedores de Cuba. Mais de 150 estudantes - a maioria deles não católicos - estão matriculados nas aulas que ensinam contabilidade, gestão, e marketing. Muitos dos estudantes que caminham pelos claustros são funcionários públicos, à procura de um aprimoramento para atuar no crescente setor privado da economia.
- A questão da educação é particularmente complexa, pois todas as escolas e universidades católicas foram nacionalizadas em 1961 e o Estado mantém monopólio exclusivo do sistema de educação formal. A Igreja tem salas de aula e centros de formação onde não religiosos também podem fazer cursos de línguas ou de informática. 
Mas os certificados emitidos por esses centros não têm reconhecimento oficial. Mesmo assim, estes cursos têm grande demanda pela alta qualidade - ressalva o cubano Gustavo Andújar, vice-presidente da Associação Católica Mundial para Comunicação (Signis).
A Igreja também está oferecendo um programa de MBA em conjunto com uma universidade da Espanha, e recentemente reabriu seu seminário para treinar sacerdotes. Hoje, 52 jovens estudam para exercer o sacerdócio, na tentativa de reduzir a histórica dependência do clero estrangeiro.
-Este é um país com 11 milhões de pessoas, e apenas 350 sacerdotes- disse à BBC o reitor do seminário, José Miguel Martin, ele próprio um espanhol.
Quando o seminário foi inaugurado em 2010, o presidente Raúl Castro foi à cerimônia. Sua presença funcionou como um símbolo poderoso da melhoria nas relações entre a Igreja Católica e o Estado comunista.
Mas alguns argumentam que os líderes católicos não estão usando sua posição privilegiada e crescente influência como deveriam. Enquanto cubanos estão livres para seguir religiões, muitos ainda são controlados politicamente.
- A Igreja tem uma doutrina social, que protege os marginalizados e os que sofrem. Mas o cardeal permanece em silêncio contra estes abusos - reclamou à BBC Berta Soler, uma das ativistas do movimento Damas de Branco, que marcha em silêncio todos os domingos em Havana.
O marido de Berta, entretanto, foi um dos 75 presos soltos em 2010 após a intervenção do cardeal junto às autoridades. Líderes católicos apontam a mediação como um exemplo do que pode ser alcançado por meio da diplomacia silenciosa.
- Não somos um partido político - disse à BBC o bispo-auxiliar de Havana, Alfredo Petit - A Igreja não será uma bandeira da justiça. Não estamos aqui para defender os direitos humanos em primeiro lugar. O nosso papel é pregar o evangelho, e isso está claro.
Muitos católicos deixaram Cuba após a revolução de 1959, alguns levando seus filhos para Miami através de grupos da Igreja. Os católicos representam a grande maioria do 1,2 milhão de cubano-americanos da Flórida.
Mas ao contrário de exilados cubanos em Miami e ativistas em Cuba, membros da igreja dizem não enfrentar discriminação. Em visitas do "Washington Post" a três igrejas na capital, párocos reclamaram - abertamente, e muito - sobre a economia cubana, expressaram o desejo de ver mudanças chegarem à ilha. Mas em relação ao tratamento dos católicos, disseram que estavam satisfeitos.
- A vida do católico é agora a mesma de qualquer outro cubano, exceto que o católico tem a sua fé- afirmou ao jornal o padre Santiago Martinez, ressaltando que agora até membros do Partido Comunista vão à missa.
Ainda assim, a tradição católica em Cuba é diferente. A ilha é conhecida por seus "católicos nominais", que podem ir apenas algumas vezes na vida à missa - enquanto mantém em casa santuários para homenagear divindades afro-caribenhas. Autoridades da Igreja dizem que cerca de 60% dos 11,2 milhões de cubanos são católicos, mas apenas cerca de 5% vão regularmente à missa.
- Se se define como católico aquele que vai à missa todos os domingos e recebe regularmente os sacramentos, em Cuba não seriam muitos. Entretanto, aproximadamente duas de cada três crianças são batizadas na Igreja Católica, e algo mais do que dois terços dos enterros na capela do cemitério são dirigidos por uma autoridade católica - enumera Andújar.
Recuperar a glória da Igreja em Cuba ainda vai levar tempo. Religiões afro-cubanas, como Santeria, um legado da escravidão na ilha, são comuns e estima-se que as igrejas protestantes têm, combinadas, cerca de 800 mil fiéis.
- O trabalho ecumênico foi muito favorecido na ilha com a discriminação contra grupos religiosos, fez com que as igrejas trabalhassem em conjunto. Não vemos em Cuba conflitos religiosos. As religiões afro, por exemplo, sempre foram tratadas como parte da cultura cubana, não são satanizadas pela Igreja Católica - explica Nívia.
Antes da revolução, as religiões protestantes, como batistas, metodistas e presbiterianas, tiveram uma forte presença em Cuba devido à influência americana na ilha, e estão cada vez maiores hoje, incluindo as igrejas evangélicas e pentecostais.
Entretanto, nenhuma dessas religiões são tão poderosas institucionalmente como a Igreja Católica, nem exercem sua influência política. Dentro de certos limites, a Igreja tornou-se uma voz forte para a mudança econômica e política, particularmente através das suas publicações. 
Revistas católicas costumam publicar críticas abertas ao governo em seus artigos. Uma edição recente elogiou as mudanças nas políticas econômicas do presidente Raul Castro como "positiva e bem intencionada", mas afirmou, sem rodeios que "não são suficientes para enfrentar os problemas econômicos e sociais que se acumularam em 52 anos de socialismo".
- A relação (entre Igreja e Estado) é um processo gradativo e lento, faz parte da mudança que Cuba está vivendo. Do jeito que o regime era fechado, não pode ser do dia para noite. Uma das dificuldades são os meios de comunicação. A Igreja pode ter um jornal próprio, local. Mas não há espaço na mídia estatal, só agora com a visita do Papa - aponta a teóloga Nívia Núñez de La Paz.
Para Leonardo Boff, a Igreja em Cuba ainda tem outro desafio pela frente:
- A igreja cubana sempre foi urbana. O que a difere da brasileira, que tem uma estrutura agrária. Agora eles estão tentando conquistar esse lado, inclusive aproveitando iniciativas bem sucedidas aqui, como os círculos bíblicos e as comunidades de base.
Desde a primeira visita de um Papa à ilha, há 14 anos, o número de fiéis tem crescido nas igrejas. A Igreja estima que 800 cubano-americanos viajaram nesta semana a Cuba para assistir à missa de Bento XVI em Havana e Santiago, a maior perigrinação religiosa de católicos à ilha.
- Hoje acontece em Cuba o processo inverso de outros países na América Latina. Há um crescimento constate de fiéis. Até porque muitas pessoas, que já eram católicas, puderam voltar a praticar a religião com a abertura - aponta Nívia.
Mas embora Bento XVI use palavras como "diálogo" e "reconciliação" para descrever a sua missão em Cuba, ficou claro terça-feira que há limites. O funcionário encarregado da reforma econômica, Marino Murillo, foi perguntado em uma entrevista coletiva se o diálogo pode se mover para a política.
- Estamos atualizando nosso modelo econômico, mas não estamos falando sobre a reforma política- disse Murillo.
Fonte: http://br.noticias.yahoo.com  [Esta reportagem foi publicada no vespertino para tablet "O Globo a Mais"] 

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