Fé que mata – Por Alice Melo


Biblioteca Fazendo História discutiu as origens do messianismo na sociedade Ocidental: da Antiguidade à Modernidade, os movimentos liderados por profetas sempre foram recebidos a ferro e encerrados com sangue

Mesmo sozinho no palco devido à ausência inesperada da historiadora Jaqueline Hermann, o pesquisador Edgard Leite Ferreira Neto conduziu, até o final, o Biblioteca Fazendo História, que ocorreu na tarde desta terça (16), na Biblioteca Nacional

O tema da edição foi o messianismo: suas origens e a posterior aplicação no Brasil. A escolha do assunto se deve ao dossiê publicado pela Revista de História neste mês, que discute a Guerra do Contestado sob múltiplos olhares.

Mas para entender o derramamento de sangue no início da República, é necessário voltar a um passado mais distante, que remete à construção do pensamento da sociedade Ocidental judaico-cristã. 

“Os movimentos messiânicos são trágicos, surgem em geral em momentos de crise e são dizimados com muita violência”, aponta o professor do Departamento de História da Uerj. 

“A base destes movimentos está na Antiguidade e passa pela Idade Média. Consiste na crítica às pessoas que ocupam o topo da hierarquia social, dizendo que estes não são dignos de seu cargo, por não possuir mais a virtude necessária. Não era incomum que aparecesse um camponês, uma figura humilde, sem qualidades, que teria recebido de Deus um grau de virtude superior ao do soberano”.

Mas, como ele alerta, as relações de poder são sempre alvo de disputa e, por estes líderes religiosos populares construírem seu pensamento dentro de uma lógica que não previa ruptura com o sistema hierárquico de seu tempo, eram recebidos com violência pelos donos do poder. 

Os exércitos messiânicos quase nunca tinham força para derrubar as tropas dos governantes, ainda que tivessem ao lado da Divina Providência. “Deus mandaria que o escolhido restaurasse o sistema de virtudes. Os movimentos messiânicos, que gravitam em torno da figura  de um messias redentor, utilizavam o discurso da ordem social contra ela. Funcionava por um tempo, mas não se sustentava. Os que se diziam virtuosos, acabavam lutando contra uma ordem virtuosa,  e ficavam num ciclo vicioso”.

E a situação piorou para os profetas e seus Exércitos com a chegada da Modernidade. Em tempos de racionalidade, grupos revolucionários inspirados por motivação religiosa não tinham legitimidade, ainda que em sociedades predominantemente cristãs, como o Brasil.

“As causas da rebelião, da insurreição, da luta contra a tirania, passam, com o século XVII a partir não mais da lógica de virtudes, elas têm outros pressupostos com base no individualismo”, aponta o historiador.

Os exemplos de Contestado e Canudos deixam isso claro. Ocorridos no início do século XX em regiões distintas (Sul e Nordeste), despertaram uma resposta agressiva e violenta por parte do Estado: em nome da ordem e do progresso, sangue. 

“A situação aqui conseguiu ser mais dramática do que no caso do milenarismo medieval. O objetivo das forças dominantes era de matar todo mundo; não há mais caridade, porque a lógica das hierarquias sociais é outra, não mais baseadas na  virtude divina”.

No Nordeste, em Canudos, o grupo social estável baseado numa lógica religiosa virou do avesso quando houve intervenção do Estado republicano: foram massacrados. No Sul do Brasil, uma década depois, sertanejos se basearam num ideal messiânico em torno de um profeta para protestar contra ações pontuais do governo, se organizando em exércitos de salvação. 

O destino foi o mesmo: a erradicação. Leite completa: “Numa sociedade moderna, na Republica, um movimento messiânico, de cunho religioso não é reconhecido, não é legitimado pelas forças do Estado. É um absurdo e sua erradicação deve servir de exemplo”.

Quando a palestra foi aberta ao público, muito se quis saber sobre o Brasil de hoje: em que pé estamos diante de uma queda da religiosidade católica e ascensão das igrejas evangélicas. 

“Para mim, o Brasil é uma terra em transe”, afirma o professor, fazendo um trocadilho com o nome do filme de Glauber Rocha, premiado no Festival de Cannes de 1967. “O país está se transformando e ainda não sabemos o que está por vir. O comportamento político do brasileiro ainda tem muito da moral cristã, apesar do Estado laico contemporâneo”.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

A fé que vem da África – Por Angélica Moura