O papel social das religiões – Por Daniella Hiche


O surgimento de novas formas de intolerância religiosa no Brasil reabriu os baús que escondiam a opressão e a violência cometidas contra os seguidores de tradições religiosas não reconhecidas outrora pelo pensamento dominante de nossa sociedade.

A intolerância varia imensamente em suas formas e manifestações. Assume as vestes da negação da capacidade ou do direito das religiões de contribuírem para o pensamento e políticas públicas de interesse coletivo, uma forma de intolerância sutil e refinada, praticada pelos mais doutos e mascarada na defesa da laicidade do Estado. Passa pela necessidade enfrentada por indivíduos e coletivos de remodelar suas crenças para atender as aspirações de uma sociedade em evolução. E culmina com "neonismos" de formas mais arcaicas e violentas, incluindo a difamação e a incitação ao ódio, diante de aparente despreparo psicológico coletivo para lidar com a diversidade.

Tardia e timidamente, o Brasil começa a se dar conta da pluralidade de suas matrizes religiosas. Contudo, a intolerância se manifesta de novas formas, contrapondo esse ritmo lento assumido. É como se a um adolescente se revelasse repentinamente quem são seus verdadeiros pais: negação, crise e revolta, sendo-lhe ainda impossível, em sua imaturidade, entender a riqueza e complexidade do mosaico de sua realidade.

Mas, diante de todas as dificuldades, o povo brasileiro teima em acreditar. As tradições religiosas afro-brasileiras e indígenas, por exemplo, continuam fazendo ecoar seu grito pelo reconhecimento. Para além do respeito, seus seguidores querem ser tratados como protagonistas na formulação do pensamento e da identidade da nação brasileira. As condições desfavoráveis desde o colonialismo não as impediram de realizar sua ação social, indicando a vitalidade e a força que essas, e outras, ditas minorias religiosas oferecem ao nosso país.

Como em qualquer processo de amadurecimento, aqueles que aspiram por uma sociedade alicerçada na prevalência dos direitos humanos aprendem a fazê-lo com paciência histórica. Ainda que a promoção, a proteção e a defesa dos direitos humanos no Brasil estejam aquém dos pré-requisitos para que nossa sociedade possa extrair concomitantemente da ciência e da religião a seiva para sua prosperidade e bem-estar, há avanços significativos.

A terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos contempla em suas ações programáticas mecanismos para o livre exercício das diversas práticas religiosas, coibindo manifestações de intolerância, além da realização de pesquisas populacionais para identificar as práticas religiosas e não crenças, bem como o número de seus adeptos no Brasil. Também reconhece a função da diversidade religiosa na disseminação da cultura de paz e propõe que essa mesma diversidade seja contemplada nos currículos escolares, como elemento da educação em direitos humanos.

Em novembro de 2011, deu-se início ao processo de formação do Comitê Nacional de Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, composto, por ora, por religiosos e acadêmicos. Sua principal atribuição é auxiliar o governo brasileiro na formulação e execução de políticas que, para além de combater a intolerância religiosa, fomentem a valorização do papel social das religiões no Brasil em meio à riqueza de sua diversidade.

Segmentos da sociedade civil brasileira também vêm aprendendo a trabalhar ombro a ombro com organizações religiosas. A antiquada visão de que o papel social das religiões limita-se à caridade vem cedendo lugar ao reconhecimento de que possuem uma função tanto colaborativa na formulação do discurso público no que tange a saúde, a educação, a segurança pública e o desenvolvimento nacional, como executora e disseminadora desse discurso, tendo em conta a capilaridade no tecido social desses protagonistas.

A laicidade do Estado é um princípio basilar para a garantia e valorização da diversidade religiosa, pois é capaz de descaracterizar a hegemonia dominante que impede a própria afirmação desse princípio.

O Brasil chega à fase adulta cobrando do Estado e de seus cidadãos a maturidade de reconhecer a função social das religiões e a verdadeira essência do lema: "igualdade na diversidade". Aproveitemos o 21 de janeiro, Dia Internacional das Religiões e Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, para quebrar definitivamente os cadeados dos baús do passado. Tomemos a opressão à diversidade religiosa praticada no passado como lição, evitando assim o escalamento das novas formas de intolerância religiosa e construindo um futuro de mais liberdade e respeito a todas as crenças.

Daniella Hiche é Membro do Comitê de Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e da Comunidade Baháí do Brasil.




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