«A homossexualidade no Islão Medieval»

Miguel F. Boronha*, natural de faro, apresenta amanhã, 29 de maio, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a sua Tese de Mestrado sobre 

«A homossexualidade no Islão Medieval»

Em entrevista à Qüir explica os contornos da sua investigação e aguça o apetite de todos os interessados nesta matéria, convidando-os a estarem presentes.

Qüir: O que motivou a escolha deste tema para a Tese?

Miguel F. Boronha: O interesse por este tema surgiu enquanto frequentava, no último ano da Licenciatura, uma cadeira denominada de "Quotidianos Medievais", para a qual elaborei um pequeno trabalho sobre o Erotismo na poesia árabe medieval, de forma bastante abreviada. Em contacto com as fontes para esse mesmo trabalho, fiquei algo surpreso com a enorme quantidade de poesia de cariz homoerótico, algo que não esperava encontrar no seio de uma cultura que impõe tantas restrições às manifestações de afecto entre pessoas do mesmo sexo. Acabei por investigar mais sobre o tema, e descobrir cada vez mais documentos medievais em que estas manifestações eram explícitas, até que me cruzei com um livro do século XIII, de um autor Tunisino chamado Ahmad Al-Tifashi, que continha, num dos seus capítulos, a "receita" para uma "cura" da homossexualidade. Foi nesta altura que decidi que o tema tinha imenso por onde pegar e que seria de relevante a elaboração deste estudo.

Q: Quais as premissas de partida para o estudo?

MFB: O meu interesse é o de compreender o papel deste homoerotismo no seio da sociedade medieval islâmica e qual a perspectiva das pessoas da época sobre os comportamentos homossexuais. O conceito de homossexualidade é muito recente, surgindo na Europa do séc. XIX, e por isso convém salientar que não o podemos transportar da mesma forma para o passado; são essas particularidades que procuro estudar e entender.

Q: Porque te focas só na homossexualidade masculina?

MFB: As razões são várias. Em primeiro lugar, são apenas dois anos que temos para fazer a tese, o que exige uma concentração do tema. Em segundo, porque os contextos em que ocorrem relações homossexuais entre homens na sociedade medieval islâmica são bastante específicos e diferenciados daquilo que acontece entre as mulheres, e portanto têm que ser feitos estudos independentes a cada um destes fenómenos, podendo no máximo fazer-se algum tipo de abordagem comparativa. Finalmente, é também uma questão de fontes: é aos homens que cabe a maior percentagem de produção intelectual durante a Idade Média, devido a circunstâncias várias impeditivas para que a generalidade das mulheres tivesse as mesmas oportunidades, e como tal a documentação que nos chega dentro deste tópico dedica-se, na sua maioria, à homossexualidade masculina.

Q: Quais têm sido as principais dificuldades?

MFB: A escassez de fontes será talvez a principal. Não existe nenhuma obra produzida durante a Idade Média, dentro do mundo islâmico, com o título "Tratado sobre a homossexualidade", infelizmente. Como tal, para investigar sobre este tema, estamos condenados a ter que procurar entre a documentação mais variada, algumas "migalhas" que nos possam fornecer informações valiosas. Tratados médicos, poesia, literatura, documentos de natureza do direito islâmico... Um trabalho digno de Sherlock Holmes, sem dúvida. Felizmente, tenho contado com o apoio de Professores e colegas, que mesmo sendo de áreas de estudo diferentes, apontam sempre para um ou outro documento que conheçam e que me possa ser útil.

Q: Tendo em conta as investigações que já fizeste, quais as primeiras impressões a que chegaste?

MFB: Para já, e recordo que ainda estou numa fase inicial da minha investigação, ficou claro que o problema em torno das relações homossexuais entre homens muçulmanos no período medieval é extremamente complexa, e envolve questões que estão muito para além do afecto. É uma questão de natureza política e social, que está profundamente ligada à segregação dos sexos que existe na sociedade islâmica, e no difícil acesso por parte dos homens jovens e com menos posses ao casamento. A questão da jurisprudência islâmica sobre este tema é também muito interessante, já que o Qur'an, livro sagrado do Islão, não especifica quais as medidas a aplicar em relação à 'sodomia', sendo estas propostas em Hadith (ditos atribuídos ao Profeta) cuja validade é, muitas vezes, questionável. Também não estava à espera da especificidade de conceitos existentes em Árabe desde a Idade Média em relação à homossexualidade, existindo coisas como "parceiro homossexual ativo", "parceiro homossexual passivo", "versatilidade", e "efeminado", por exemplo.

Q: Farás também uma comparação entre as principais diferenças e semelhanças entre o Islão atual e medieval?

MFB: Bom, isso só por si seria digno de uma tese. No entanto, de apresentar na conclusão os pontos de ligação e ou ruptura que existem entre o Islão contemporâneo e o Medieval em relação à questão da homossexualidade. Será essa, afinal, uma das principais funções da História: olhar para o passado, e como tal compreender o presente e (tentar) preparar para o futuro. É por isso que esta ciência é útil, ao contrário do que alguns políticos defendem...

Q: E com a sociedade ocidental?

MFB: Em relação à sociedade ocidental, é imprescindível procurar saber o que as fontes cristãs medievais têm a dizer sobre o tema em relação à sua própria realidade, e depois tentar enquadrar possíveis paralelismos, ou a falta deles, com o Islão. Afinal, irei debruçar-me essencialmente sobre a realidade do Al-Andalus (Peninsula Ibérica), em que ambas as religiões (e também a Judaica) convivem e acabam por se influenciar mutuamente.

Q: Quem são as grandes referências nestas matéria?

MFB: Quanto à História da Sexualidade, Foucault é o primeiro nome a vir à mente. Este historiador, que infelizmente faleceu demasiado cedo com HIV, acabou por deitar as primeiras fundações nesta área, e que forneceu uma importante instrumentalização teórica digna de ser continuada e aplicada a outras épocas, já que ele acabou por trabalhar apenas a Antiguidade Clássica. Para além dele, há um nome relevante no mundo islâmico: Abdelwahab Boudhiba. Não aborda diretamente a questão da homossexualidade, mas providencia importantes considerações quanto às sensibilidades e especificidades islâmicas sobre a sexualidade humana.

Q: Sendo uma sociedade mais fechada no que diz respeito à liberdade sexual, como foi possível desenvolver este tema?


MFB: A postura em relação a este problema, na Idade Média, é diferente da de hoje, pelo que já me foi dado a compreender nesta fase inicial do estudo. Há uma maior abertura para se falar sobre o assunto, e que muitas vezes chega a ser demasiado explícito, como em alguns poemas da Idade Média verdadeiramente escandalosos, até para os parâmetros de hoje. Como já disse, é uma questão de saber aquilo que se procura, e onde o procurar, e acabam por nos aparecer os dados. Certamente que seria um tema mais difícil de abordar dentro da própria sociedade islâmica, mas nisso tenho a vantagem de não me serem postas dificuldades dessa ordem em Portugal.




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