Em 'Preenchendo Vazio', um olhar que desafia cânones da religião – Por Luiz Carlos Merten

Quem viu Kadosh, de Amos Gitai, anos atrás na Mostra, guarda a lembrança do virulento ataque do autor às tradições da religião ortodoxa em Israel. 

Gitai filmava um mundo em que a posição da mulher era secundária e o sexo, uma imposição do homem. Numa cena, o casal vai para a cama e o espectador assiste simplesmente a um verdadeiro estupro. O sexo dos ortodoxos isrealis está de volta em Preenchendo o Vazio, mas, desta vez, existem sutilezas que é preciso levar em conta.

O filme que venceu o prêmio Bandeira Paulista como melhor ficção de diretor(a) estreante na Mostra do ano passado foi realizado por uma mulher, a primeira cineasta do sexo feminino ortodoxa de Israel. Vai nisso uma diferença de olhar. 

Rama Burshtein continua filmando uma tradição que oprime as mulheres, mas, assim como ela afirma-se como autora logo no primeiro filme, a personagem de seu filme, Shira, também é confrontada com escolhas. Enfrenta a violência, mas ela não é física, e, na cama, como a de Kadosh. Talvez por isso seja até mais insidiosa, e perturbadora.

Shira está para se casar quando sua irmã mais velha morre no parto. É um choque para toda a família, e mais ainda quando o viúvo, seguindo uma tradição dos ortodoxos, a de preencher o vazio, buscando nova companheira para substituir a mulher falecida, decide que vai se casar com uma judia belga. 

Isso significa que ele vai deixar Israel, mudar-se para a Europa e, para a família de Shira, é um tormento. Seus pais, e a mãe possessiva, não apenas perderam a filha como poderão perder o neto. Em desespero, para tentar evitar o que parece decidido, a mãe impõe sua solução.

A caçula vai desistir do casamento e se unir ao cunhado, assumindo os encargos de esposa e mãe da irmã. Para isso, terá de abrir mão de seus sonhos, de sua identidade. Compreensivelmente, ela vacila, mas há a pressão da família, da comunidade. Israel tem a democracia mais avançada do Oriente Médio, mas vive num frágil equilíbrio entre moderados e falcões. 

Como é possível que a sociedade possa ser tão moderna em certos aspectos e, ao mesmo tempo, tão arcaica em outros? É a pergunta que Rama Burshtein se faz e repassa ao espectador.

Seu filme se constrói na rotina de um segmento social para quem a religião é essencial. Preces, cultos. Mas o filme também é um consistente estudo de personagens. Os pais de Shira são compassivos, o que não impede a mãe de ferir os sentimentos da filha. Shira, interpretada por Hadas Yaron, não quer ser uma propriedade da família, mas também, por sua formação, hesita em se rebelar. 

O próprio cunhado parece um enigma, nunca sabemos muito bem o que ele está pensando ou desejando. O homem pode ser dominante nessa estrutura social, mas ele também é dominado por um sistema de valores que o ultrapassa.

Tal é a complexidade de Preenchendo o Vazio. O filme arma uma situação forte e potencialmente explosiva, mas trabalha-a por meio de uma observação delicada. Pequenos toques e humor. 

O rabino, a tia falastrona, as casamenteiras, os vizinhos, de repente é todo um mundo que gira em torno dos dois casamentos, o que se desfaz e o que se organiza. Como em toda organização religiosa, o casamento é uma legitimação para o sexo, cuja função não é (tanto) o prazer, mas a procriação. 

Rama Burshtein sabe disso. Todos os pequenos gestos de seu filme refletem-se de significados mais amplos, o que se discute nas entrelinhas da história e das escolhas que propõem é tanto a ética quanto o significado da própria religião enquanto espiritualidade.

Rama Burshtein e seu diretor de fotografia Asaf Sudri usam a luz para criar uma aura em torno de Shira. É como se o movimento do filme, para a diretora, fosse captar a alma da personagem e oferecê-la ao espectador. 

É curioso, mas outro filme em cartaz, que também trata de religião e com outra protagonista de quem a família dispõe como se fosse um objeto, a nova versão de A Religiosa, por Guillaume Nicloux, também parece buscar a alma (e a aura) de Suzanne Simonin, e ela é uma vítima do catolicismo. Há que colocar vítima entre aspas, porque Rama Burshtein, como mulher, quer sugerir que existem escolhas, sim. Para a própria vítima é fácil aceitar-se como tal e dobrar-se. Difícil é resistir. Sem resistência, não há mudança.

Rama Burshtein nasceu em Nova York. Tinha um ano quando sua família mudou-se para Israel. Baseada em Tel-Aviv, mudou-se para Jerusalém, onde cursou a Escola Sam Spiegel de Cinema e Televisão. Aos 25, converteu-se à religião ortodoxa para se casar. Teve filhos (três homens e uma mulher). 

Durante anos, integrou um grupo de mulheres ortodoxas que faziam filmes domésticos só para elas. Mas isso não lhe bastava, e Rama dedicou-se, durante 15 anos, ao projeto que resultou em Preenchendo o Vazio. Finalmente, aos 45 anos, ela conseguiu finalizar a obra e exibi-la no Festival de Veneza de 2012. Sua maior dificuldade, ela conta na internet, foi encontrar a atriz para ser Shira. Tinha de ser alguém muito especial. 

Ela pesquisou durante um ano, mas selecionou Hadas Yaron, que correspondeu à expectativa e ganhou a Taça Volpi de interpretação feminina em Veneza. Outro ano foi consumido na montagem. Rama admite que se sentia insegura. A chuva de prêmios que Preenchendo o Vazio recolheu pelo mundo, incluindo em São Paulo, não cessa de surpreendê-la.






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