Muçulmanos que vivem na China dizem que preconceito é crescente – por Andrew Jacobs e Gilles Sabrie

As pessoas em busca de oportunidades nessa antiga cidade-oásis na região de Xinjiang, no extremo ocidente da China, parecem ter muitas opções, com base em uma rápida olhada em um site de empregos local: 

o Centro Cultural Kashgar tem uma vaga para coreógrafo de dança experiente; o escritório do Partido Comunista da prefeitura está contratando um motorista, e o condado próximo de Sule precisa de um arquivista.

Mas estas e dezenas de outras vagas de emprego vêm com uma ressalva: os uigures, muçulmanos de língua turca, que compõem cerca de 90% da população de Kashgar, não são aceitos. 

Cerca de metade dos 161 cargos anunciados no site de informações do funcionalismo público indicam que apenas serão considerados para as vagas os chineses da etnia han ou os que têm como língua materna o mandarim.

Tal discriminação, comum em toda a região, é uma das muitas indignidades que os 10 milhões de uigures da China enfrentam em uma sociedade que cada vez mais os retrata como não confiáveis e propensos ao extremismo religioso. 

Os uigures estão em grande parte de fora da expansão da indústria de gás e petróleo da região, os empregos do aeroporto são reservados para candidatos han e os motoristas de caminhão cujo documento declara sua etnia como uigur não podem obter as licenças necessárias para transportar combustível, uma regra não escrita baseada no temor de que os caminhões de petróleo e gás podem facilmente ser transformados em armas, de acordo com várias empresas de transporte.

Apesar do nome, Região Autónoma Uigur de Xinjiang, essa extensão estrategicamente crucial de deserto e montanhas cobertas de neve que faz fronteira com vários países da Ásia Central é rigidamente controlada por Pequim. Os principais cargos do governo, bem como os cargos críticos no aparato de segurança, são dominados por chineses han, muitos deles recrutados na parte oriental do país.

"Em essência, os chineses não confiam em nós, e isso está tendo um impacto corrosivo sobre a vida em Xinjiang", disse Ilham Tohti, economista uigur proeminente em Pequim. "E, do jeito que as coisas vão, isso vai piorar."

Depois de um verão de violência que ceifou ao menos 100 vidas, analistas, defensores dos direitos humanos e até mesmo um punhado de acadêmicos chineses estão soando alarmes sobre o que eles chamam de políticas repressivas que estão alimentando a alienação e a radicalização entre os uigures, muitos dos quais aderem a um tipo moderado de islamismo sunita. Essas políticas foram reforçadas desde que tumultos étnicos deixaram ao menos 200 mortos em Urumqi, a capital regional, há quatro anos.

O governo chinês acusa agitadores de fora, entre eles membros de um movimento separatista que teria laços com jihadistas globais. Embora tenha havido uma série de ataques não provocados contra policiais ou soldados chineses nos últimos anos, a maioria dos especialistas dizem que a ameaça de militantes islâmicos é muito menos potente e organizada do que diz Pequim.

Em agosto, não muito longe de Kashgar, policiais paramilitares atiraram contra pelo menos 32 homens, matando uma dúzia, em uma batida contra o que descreveram como um "centro de munições" secreto; poucos dias depois, pelo menos uma dúzia de outros uigures foi morta enquanto orava em uma fazenda no município de Yilkiqi, de acordo com a Radio Free Asia. 

As autoridades disseram que os homens estavam participando de "atividades religiosas ilegais" e treinando para um ataque terrorista, mas não forneceram mais detalhes.

Outros episódios incluem um tiroteio perto de uma delegacia de polícia em Aksu que feriu 50 e deixou três mortos, e um confronto violento em Hotan, outro posto avançado da Rota da Seda, durante o qual dezenas de homens foram baleados enquanto protestavam contra a detenção de um imame local. 

A mídia estatal chinesa descreveu esses e outros episódios como "ataques terroristas"; grupos de exilados dizem que eram manifestações pacíficas que foram esmagadas com força bruta.

Os moradores locais dizem que estes e outros confrontos têm sido alimentados pelas realidades desanimadoras da vida diária local: a discriminação no trabalho institucionalizado, as restrições que proíbem os menores de 18 anos de entrar nas mesquitas e a dificuldade que muitos uigures enfrentam na obtenção de passaportes. 

Os uigures que têm a sorte de viajar para o exterior dizem que, ao retornar, muitas vezes são interrogados por agentes de segurança que exigem saber se eles se envolveram em atividades separatistas.

"O governo deve perceber que as decisões irresponsáveis e inadequadas por parte das autoridades locais estão causando apenas mais instabilidade", disse Yang Shu, professora de estudos da Ásia Central da Universidade de Lanzhou, referindo-se às regras que desencorajam as mulheres de usar lenços de cabeça e os homens de deixar a barba crescer.

Muitos uigures também estão convencidos de que Pequim está tentando acabar com sua língua e cultura por meio de políticas de assimilação e educação que favorecem o mandarim sobre o uigur nas escolas e nos empregos públicos. 

Desde 2004, uma iniciativa de educação bilíngue exigiu que professores em grande parte da região passassem a usar o mandarim para quase todos os assuntos. As autoridades insistem que a política tem como objetivo ajudar os uigures a competirem em um país onde o mandarim é a língua franca, mas muitos pais, professores e intelectuais uigures não estão convencidos.

"Minha filha de 17 anos fala bem o chinês, mas não consegue ler uma obra de literatura uigur", disse um funcionário do governo em Urumqi, que pediu para permanecer anônimo porque essa crítica pode ter consequências graves. "Na próxima geração, temo que o nosso povo será analfabeto funcional em uigur."

O medo e a desconfiança entre as duas etnias agravaram-se nos últimos anos, enquanto um número crescente de imigrantes chineses da etnia han se estabelece em enclaves fortemente vigiados, especialmente no sul de Xinjiang, que continua a ser predominantemente uigur. 

Mesmo em Urumqi, onde a etnia chinesa Han compõe 75% da população, grupos de policiais fortemente armados ficam posicionados ao longo dos bairros uigures; à noite, os uigures são proibidos de se sentar no banco dianteiro dos táxis, de acordo com uma lei local que supostamente combate o crime.

Huang Xiaolin, um engenheiro han que recentemente foi atraído da província costeira de Shandong para Hotan, com um salário generoso e habitação subsidiada, disse que os colegas frequentemente o advertem a não entrar no bairro uigur da cidade. 

"As pessoas daqui são pouco civilizadas e propensas à violência", disse ele, de pé perto de um banner de propaganda que dizia: "Os han e os uigures não podem viver uns sem os outros".
Pequim acoplou sua abordagem de segurança "mão pesada" com um desenvolvimento econômico turbinado, mas até isso tem alimentado o ressentimento entre os uigures, que dizem que os melhores empregos vão para os han recém-chegados. 

"O governo chinês está focado em uma compreensão muito ultrapassada de desenvolvimento macroeconómico, dizendo que vai elevar todos ao mesmo patamar, mas claramente não está funcionando", disse Sean R. Roberts, professor da Universidade George Washington, que estuda o desenvolvimento na região.

Parte da reação, segundo os especialistas e moradores, foi motivada pelas restrições cada vez mais intrusivas sobre a religião. Os funcionários públicos podem ser demitidos por participar das orações sexta-feira à tarde, e os estudantes universitários uigures dizem que muitas vezes são obrigados a almoçar nas cantinas escolares durante o mês sagrado do Ramadã, quando os muçulmanos jejuam. 

Nas cidades de toda a região há sinais advertindo as pessoas contra a oração pública e há câmeras de vídeo apontadas para as portas das mesquitas. Os moradores também dizem que o governo mantém uma extensa rede de informantes pagos e monitora o tráfego de internet e as conversas de celular.

Tais políticas nascem da preocupação de que o islã radical, que tem desestabilizado o vizinho Afeganistão e o Paquistão, vai se enraizar em Xinjiang. O medo não é totalmente infundado, dada a proximidade da região com países sem lei que forneceram um paraíso para uma variedade de jihadistas de todo o mundo muçulmano, incluindo alguns uigures.

Mas os especialistas dizem que a repressão às escolas religiosas não sancionadas e outras restrições promoveram uma religiosidade ainda maior. 

"Cinco anos atrás, você ficava chocado ao ver uma mulher de véu em Urumqi, mas não mais", disse um acadêmico han na Universidade de Xinjiang, que é crítico de políticas de Pequim na região. "Para um monte de uigures, deixar a barba crescer e pedir à mulher para cobrir a cabeça em público tornou-se um ato de desafio".

Apesar do crescente número de mortos, analistas dizem que é improvável que a nova liderança da China reconsidere suas políticas radicais tão cedo. Durante uma visita de Estado a quatro nações da Ásia Central no mês passado, que pretendia reforçar o papel de Xinjiang como eixo de uma Rota da Seda revitalizada, o presidente Xi Jinping prometeu continuar a luta contra o que descreveu como as "três forças" do separatismo, terrorismo e extremismo religioso, de acordo com a agência de notícias oficial Xinhua.
Ao não considerar as causas do descontentamento uigur, Pequim pode radicalizar involuntariamente uma geração de jovens, disse Nicholas Bequelin, pesquisador da Human Rights Watch, que tem sede em Hong Kong. 

"Toda a etnia uigur se sente asfixiada, tendo se tornado suspeita de simpatizar com o extremismo", disse ele. "Xinjiang está presa em um círculo vicioso de aumento da repressão que só leva a mais violência."



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