“Alabama Monroe” Luzes nas trevas – Por Cloves Geraldo *

Filme do cineasta belga Félix Van Groeningen discute a influência conservadora-criacionista nas relações político-sociais e amorosas atuais.

O secular conflito entre ciência e religião continua a gerar polêmicas e a consumir energias e grandes somas para bloquear avanços em pesquisas e influenciar corações e mentes. 

Com clareza, o cineasta belga Félix Van Groeningen mostra neste “Alabama Monroe” o quanto esta dualidade põe em risco milhares de vidas no planeta, principalmente depois da emergência das células-tronco. E defende-as como direito de qualquer pessoa à vida, independente de raça, religião ou tendência partidária.

O filme começa pelo meio e vai deslindando cada subtema e fios, até fechar numa explosão de racionalidade e emoção. A sutileza de Groeningen e seu parceiro, Carl Joos, está em evitar na escritura do roteiro que um se sobreponha ao outro, perdendo o fio central. Isto se evidencia logo na primeira sequência do filme, quando se vê a garotinha Maybelle (Nell Cattrysse), filha do casal Elise (Veerle Baetens) e Didier (Johan Heldenbergh), numa cama de hospital. E irá equilibrar toda a trama.

Sucessivos entrechos intercalam relações amorosas e familiares, vida no campo, shows musicais e, de novo, os temores com a doença de Maybelle. Neste vai-e-vem, Groeningen vai criando clima para as sequências finais, tendo já deixado na cabeça do espectador todas as situações. A começar pela relação Elise/Didier. Ela, tatuadora, marca sua vida no corpo, entre borboletas, namorados e visão de mundo. Seu desnudar é como um mapa, cheio de símbolos, caminhos e enigmas.

A borboleta, cuja metamorfose tende à liberdade, pode também estar presa à sombrias imagens, de ser prisioneira de situações que a levam a sucumbir. Ela e as demais tatuagens criam vida, antepõem perdas sobrepostas à realidade. 

Também Didier com suas histórias materialistas sobre estrelas e o cosmo antecipa situações, diante de uma vida aberta a fantasias. Igual à de Maybelle com seus pais; eles sabem a verdade e cada um deles irá reagir de modo adverso frente a uma cruel realidade.

Bush atrai ira de Didier

Como em outros filmes que envolvem criança em fase terminal, Elise e Didier, em princípio, tentam se recuperar da perda, depois suas diferentes visões sobre suas causas irão levá-los a caminhos opostos. 

Elise, tendente ao hinduísmo, acredita ter ela se reencarnado num pássaro, que pousa no telhado de sua varada. Didier, mais racional, interioriza sua dor, tentando esquecê-la. Isto leva ao choque entre eles, quando deveriam entender a visão do outro sobre a perda e superá-la. Não é o que acontece.

Eles se acusam, se agridem, citando problemas de saúde na família dele e o consumo de fumo e o álcool por ela, durante a gravidez. O acaso cuida de desvendar as reais causas da perda, quando o então presidente dos EUA, George W. Bush (2001/2009), suspende as pesquisas que permitiriam transplantes usando células tronco. 

“Se quisermos avançar na ética da pesquisa, devemos também ser capazes de evitar o caminho errado. Por isso eu coloquei o veto neste projeto de lei”.

Suas justificativas foram puramente religiosas, não consideraram o direito à vida ou de cada um escolher a melhor solução, sem interferência do suposto laicismo do Estado. 

”O Criador deu a todos nós o direito de viver. Podemos avançar com a ciência, respeitando seus fundamentos principais”. Ao que retruca o movimento pró-pesquisas: ”Milhões de americanos morrem de doenças que podem ser curáveis graças às células-tronco”. Isto porém não aplaca a ira de Didier, nem conforta Elise.

Religião divide Elise e Didier

O que se vê, a partir daí, é uma brutal mutação no comportamento do casal. Didier se insurge contra a religião, Elise se sente incompreendida e agredida por ele, pois acredita na reencarnação de Maybelle como pássaro. A imprecação dele, no entanto, é sua maneira de extravasar sua dor pela perda da filha. E o hinduísmo dela é a forma encontrada para suportar igual dor. 

“Por que esses bastardos vêm retardando tudo durante anos? (...) O que lhes dá o direito de fazer isso?”, pergunta o indignado Didier.

E ele ainda questiona-os: “E eles se autodenominam pró-vida. A tecnologia para matar pessoas não conhece limites, mas a tecnologia para curar pessoas é uma história diferente, porque os embriões são cultivados fora do casamento”. 

A dualidade criacionismo/evolucionismo se impõe para o casal. Elise, diante da racionalidade de Didier, se retrai. Vê-se num impasse, incompreendida em sua dor e sem poder nele se apoiar. Ele se tornou um personagem shakespeariano, dominado pelo horror.

Isto se torna evidente na brilhante sequência do teatro, quando já tornou sua perda uma causa. Diante de uma plateia hipnotizada por seu furor, ele esbraveja:

”(...) agora têm que ouvir esses retardados que questionam a teoria da evolução(...). Bem, eu não fui criado à Sua Imagem. Eu sou um macaco”. Suas contestações calam fundo, o público não reage. Desta forma, Groeningen irrompe contra o comodismo, frente às imposições e ameaças ao uso racional e necessário da ciência pró-vida.

“Alabama Monroe”. (“The Broken Circle Breakdown”). Drama. Bélgica. 2012. 111 minutos. Montagem: Nico Leunen. Trilha sonora: Bjorn Eriksson. Fotografia: Rubens Impens. Roteiro: Carl Joos/Félix Van Groeningen. Direção: Félix Van Groeningen. Elenco: Johan Heldenbergh, Veerle Baetens, Nell Cattrysse. 


* Jornalista e cineasta, dirigiu os documentários "Terra Mãe", "O Mestre do Cidadão" e "Paulão, lider popular". Escreveu novelas infantis,  "Os Grilos" e "Também os Galos não Cantam".



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