Religião na Cidade - Por Paulo Mendes Pinto e Fernando Catarino

Recebemos recentemente no e-mail da área de Ciência das Religiões, uma mensagem que é muito semelhante a tantas outras que nos vão chegando. 

Nela, depois das apresentações habituais, vinha o pedido de alguém que não conseguia rezar e que, por isso, resolveu contactar-nos para aferir se nós lhe poderíamos dar uma ou duas “fórmulas”, leia-se “orações”, para poder estabelecer a sua (re-)ligação ao transcendente. Não sendo essa a nossa função (estudamos religiões, não as ensinamos enquanto prática ou fé), obviamente reflectimos sobre a questão.

Não é o caso concreto deste e-mail que nos leva a escrever esta crónica, é sobretudo o que está por trás deste e de outros e-mails semelhantes e que nos mostram uma quebra, por vezes traumática, entre o dia-a-dia, a individualidade vivida no que de específico cada um tem, e um sentido de transcendente muitas vezes comum através de laços culturais. 

Perdidos os elos, as identidades, desaprendidos os ritos e as orações, cria-se por vezes um vazio. Esse vazio, quantas vezes é ainda alimentado por ressentimentos, por traumas da educação e da vida, seja de criança ou de jovem, ou mesmo em adulto.

As religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) habituaram os seus fiéis a associar a ideia de oração a um conjunto de palavras e de fórmulas. Aliás, muitas delas são recitadas em tom de “ladaínha”, qual mantra oriental. Foi assim durante muitos séculos. Acontece que, actualmente, cada vez mais as denominações cristãs se afastam dessa rigidez “dando” aos fiéis mais liberdade na hora de rezar. Um rezar que é entendido cada vez menos como ritual, mas sim como conversa, partilha.

Esta mudança, não temos muitas dúvidas, acontece muito por influência dos movimentos “New Age”, do bric-à-brac religioso, do verdadeiro “supermercado” de fés, práticas e métodos que hoje o comum cidadão pode ter à sua frente, mas também, quer pela liberalidade que em toda a sociedade tomou conta das formalidades, remetendo os ritos para uma natureza ultrapassada, quer pela afirmação do indivíduo e da sua capacidade de ter uma relação directa com o divino.

Se, por um lado, todas estas alterações podem ser encaradas como positivas, pois potenciam uma tomada de consciência pelo indivíduo, afirmando a sua liberdade, por outro lado, as confissões deixaram completamente órfãos muitos dos religiosos, praticantes ou não. Isto é, não souberam criar as ferramentas para que os seus fiéis não ficassem desamparados neste novo quadro.

Longe vão os tempos em que toda a donzela deambulava pela vida com um pequeno livrinho de orações pela mão, nunca se afastando muito dele. Longe de se defender um regresso a uma religiosidade apenas de fórmulas de espartilhos, a verdade é que hoje em dia não se recriou a oração. 

Tanto dizemos que só nos “lembramos de Sta. Bárbara quando troveja”, que verificamos mesmo que é assim: por mais desprendidos que sejamos das religiões, por vezes, em certas situações, lá regressamos, aflitos, se a honestidade fosse apanágio da espécie humana, quantos supostos ateus teriam de assumir que já se dirigiram a Deus em momentos de aflição?

Hoje em dia, por uma sistemática incapacidade de as Igrejas olharem para uma nova dimensão de crente, aquele que não vai à igreja enquanto espaço físico, as pessoas acabam por ficar perdidas, por não saber para onde se virar e, mais grave do que isso tudo, ficam a sentir-se como que culpabilizadas e limitadas porque não são capazes de rezar, de re-criar essa ligação com o sagrado.

Se, pelo Censos de 2011, hoje cerca de 10% da população portuguesa se declara não crente, através do projecto: Identidades religiosas em Portugal (dirigido por Alfredo Teixeira), percebemos que cerca de 4,5% da população se afirma como “crente sem religião”.

É verdade: hoje em dia o universo do religioso não se esgota nas instituições religiosas, muito menos nas tradicionais, estando a crescer em todo o chamado Mundo Ocidental esta categoria. 

Para melhor compreender a dimensão de desenraizamento religioso de muitos cidadãos, a este universo dos “crentes sem religião”, ainda há a juntar os “crentes não praticantes”, uma realidade que engrossa a larga fatia de população sem enquadramento religioso, e sem práticas de regularidade de oração cimentada em comunidade.

Contudo, e apesar destes valores que nos dão uma imagem de desenraizamento religioso, pelo mesmo inquérito, cerca de 33% da população portuguesa reza diariamente, mostrando a dimensão verdadeiramente essencialista desta prática.


No fundo, é a própria matriz religiosa que se altera através de práticas até agora deixadas para segundo plano. O valor percentual dos que oram diariamente é, decerto, um valor muito acima do que se esperava, tendo em conta que os chamados “católicos praticantes”, os que vão semanalmente à missa, não serão mais de 15% da população. Contudo, mostra que a oração individual não se confina ao espaço da Igreja, demonstrando a versatilidade da prática religiosa individual.


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